A dor crônica vive um paradoxo. Talvez não haja condição mais incômoda para quem sofre com ela e, ao mesmo tempo, tão menosprezada pelos outros (às vezes, até por profissionais de saúde). “Invisível”, “subjetiva” e “complexa”, como se rotula por aí, ela é um dos principais desafios de saúde pública hoje.
E, se não bastassem as dificuldades para o diagnóstico e o tratamento − que envolvem falta de exames específicos, abuso de algumas medicações, carência de outras e ainda terapias sem comprovação científica −, a Covid-19 veio meter o bedelho na história. É significativo o número de pessoas que, após a remissão da infecção, ficam com dores pelo corpo.
Para entender o cenário atual da dor crônica, um problema que afeta ao redor de 20% da população adulta mundial (30% entre os idosos), e o que ela tem a ver com a Covid longa, entrevistamos uma médica brasileira radicada no Canadá que se tornou uma das maiores experts na área, Andrea Furlan.
Professora da Universidade de Toronto e cientista sênior do Instituto de Reabilitação de Toronto, a fisiatra atuou na elaboração das últimas diretrizes para o tratamento da condição e o uso de opioides no Canadá e participa, neste dia 6 de abril, de um debate sobre novas tecnologias para o diagnóstico e o controle da dor crônica (clique aqui para se inscrever) em um evento online de aquecimento da Hospitalar, principal feira do segmento da América Latina.
VEJA SAÚDE: Já há alguma ideia da prevalência da dor crônica entre pessoas que tiveram Covid-19? Esses quadros possuem alguma característica peculiar?
Andrea Furlan: Sim. Em janeiro de 2022, houve a publicação de uma meta-análise [revisão das evidências científicas disponíveis] realizada por um grupo internacional. O trabalho englobou 18 estudos, envolvendo 10 530 pacientes. Os pesquisadores concluíram que, passados três meses ou mais da infecção por Covid-19, essas pessoas apresentavam dor em geral (28% delas), dor muscular (18%), dor de cabeça (20%), depressão (15%), ansiedade (20%), síndrome do estresse pós-traumático (14%) e problemas de sono (30%).
Qual é a hipótese mais aceita para explicar os danos da Covid e do pós-Covid por trás dos episódios de dor crônica?
Os mecanismos exatos não estão esclarecidos, mas parecem estar associados a problemas do sistema neurológico que levam a dores de cabeça, tontura e distúrbios de concentração, microembolia cerebral [entupimento de vasos sanguíneos do cérebro], inflamação no sistema nervoso, além de fatores psicológicos e psiquiátricos ligados ao isolamento e ao luto após a morte de familiares. Cabe lembrar que o uso de sedativos para intubação [nos casos de pacientes internados em estado mais grave] também contribui para problemas neurológicos.
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Falando em dor crônica de modo geral, a senhora acredita que a condição ainda é menosprezada pela sociedade e mesmo pela classe médica?
Sim, ainda tem muitas pessoas que não sabem o que é dor crônica. Esse tipo de dor é dividido em duas categorias. A primeira é a dor primária, que é uma doença em si. E a outra é a dor secundária, que é um sintoma de outra coisa.
Se uma pessoa tem uma doença que causa dor como a artrite, a compressão de um nervo ou um tumor em fase de crescimento, a dor é apenas um sintoma. O tratamento consiste na eliminação do que está causando a dor. Essa é a dor secundária.
A questão é que a maioria das dores crônicas é primária. Ou seja, a lesão ou a doença inicial já foi tratada, o corpo cicatrizou e eliminou a irritação, mas o sistema da dor ficou sensibilizado. No caso, a pessoa continua sentindo dor e, muitas vezes, ela é pior do que a dor original, pois começa a se espalhar pelo corpo. Vai doendo tudo. E não só isso: o problema afeta as emoções, as reações imunológicas e os hormônios.
A maioria dos médicos desconhece a diferença entre dor crônica primária e secundária. Isso não é ensinado nas faculdades. Somente os médicos que se especializam em dor aprendem essas coisas. Então o médico tenta tratar a dor primária do mesmo jeito que ele sabe tratar a dor secundária. E não vai funcionar.
Há muitas soluções infundadas prescritas para tratar a dor crônica por aí?
Existem muitas coisas que foram inventadas para tratar dor crônica, mas nem todas são comprovadas quando fazemos os estudos científicos rigorosos. Como o problema da dor crônica afeta 20% da população adulta e 30% da população idosa, esse é um mercado em que aparecem muitos curandeiros e charlatões.
Eles inventam uma nova técnica e saem vendendo e fazendo lucro às custas das pessoas que estão desesperadas. Muitos médicos se sentem incompetentes para tratar dor crônica e deixam os pacientes nas mãos de terapeutas e profissionais que prometem uma cura.
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E o que funciona, segundo as evidências científicas, para o tratamento?
De todas as terapias que conhecemos para tratar dor crônica, temos algumas que são comprovadas para aliviar o sofrimento. A dor secundária pode ser curada se sua causa for encontrada e eliminada. Mas aí está o problema. Muitos pacientes e profissionais da saúde pensam que, se eles encontram alguma coisa anormal em uma ressonância da coluna ou em um raio-x ou ultrassom, acharam a causa da doença.
Infelizmente, não é tão fácil assim. As ressonâncias magnéticas são muito sensíveis e mostram anormalidades em pessoas que não sentem dor nenhuma. Mais de 40% das pessoas que não sentem dor vão ter protusão de discos, bicos de papagaios e até hérnias de discos. Mas isso não significa que será precisa tratar, fazer cirurgia ou bloqueios de nervos.
As terapias que funcionam melhor para a dor crônica primária são aquelas que incluem a movimentação do corpo, ou seja, exercícios regulares de vários tipos, e as que trabalham o estado psicológico da pessoa para ajudá-la a retreinar seu sistema da dor. Lembra que falei que o problema, nesse caso, está na sensibilização desse sistema?
O paciente necessita ainda ter sono de qualidade, nutrição balanceada, parar de fumar e checar se existem outros problemas como disfunções na tireoide, diabetes, lesão nervosa por álcool etc.
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Lemos muito sobra a crise dos opioides nos EUA e no Canadá, onde se abusa das prescrições desses medicamentos controlados para a dor e pessoas se tornaram dependentes das drogas. Mas especialistas dizem que, no Brasil, sofremos do problema oposto: a falta de prescrição quando o remédio é necessário. Como avalia o cenário por aí?
Nos anos 1990, houve muita propaganda da indústria farmacêutica para os médicos prescreverem opioides para pacientes com dores crônicas. Mas, como a maioria dessas dores é primária, os opioides não resolvem o quadro. Na verdade, podem fazer a dor piorar, e os pacientes começam a tomar doses cada vez mais altas.
As doses de opioides prescritas no Canadá são de assustar. Ainda tem muitos pacientes tomando doses diárias que equivaleriam a uns 200 comprimidos de tramadol de 50 mg. Em Ontário, uma em cada sete pessoas recebe uma prescrição de opioide por ano.
Então imagina a situação: é muita gente tomando doses elevadas, pessoas que desenvolveram vício e outras que tomaram doses acima do que podiam tolerar e morreram de overdose.
Agora temos diretrizes para ensinar os médicos a prescrever doses menores e somente para os pacientes que realmente necessitam desse remédio, que é importantíssimo para pacientes que têm dores devido ao câncer ou em razão de uma fratura por trás de uma dor aguda insuportável.
A senhora criou uma ferramenta para auxiliar os médicos na gestão da administração de opioides. Pode nos contar como ela funciona e se a estratégia já rende frutos?
Eu desenvolvi o Opioid Manager para os médicos e o My Opioid Manager para os pacientes. Essas duas ferramentas foram criadas para ajudar os médicos e seus pacientes a lembrarem tudo que a nossa diretriz ensinava. Eu fui a líder dessa diretriz dos opioides publicada em 2010 e notei que havia muitas informações novas que os profissionais precisavam aprender.
Aqui no Canadá os médicos de família são os que mais prescrevem opioides e eles têm que aprender muitas coisas. Agora estou fazendo um curso especifico para profissionais que cuidam de pessoas com dores crônicas na saúde básica, o primary care. Já treinamos mais de 600 em Ontário.
E publicamos um artigo que mostrou que os médicos de família que passam pelo nosso programa reduziram as doses de opioides prescritas aos seus pacientes. Esse programa se chama originalmente Project ECHO e nasceu nos Estados Unidos para o tratamento de hepatite C na rede básica de saúde.
Em 2020, eu também comecei um Project ECHO voltado ao tratamento da Covid-19 na saúde básica de Ontário. Fizemos três ciclos com 12 sessões cada para ajudar os profissionais a tratar pessoas que não precisavam de internação hospitalar.