Quase todo mundo tem em mente que a escolha dos alimentos é capaz de ajudar a prevenir ou a derrotar um câncer. O que poucos imaginam é que, para um número expressivo de pessoas diagnosticadas com a doença, o plano de combate ao tumor gera efeitos colaterais que dificultam a hora de comer.
Uma nova revisão de 25 estudos sobre o tema, publicada no periódico da Academia Americana de Nutrição e Dietética, comprovou que o paladar da maioria dos pacientes foi prejudicado durante e após o tratamento.
Aqueles que realizaram radioterapia permaneceram com as alterações até 24 meses após o fim das sessões.
A repercussão entre quem passou pela químio foi menos frequente, mas, no grupo afetado, persistiu por mais seis meses depois da terapia. Com o paladar tumultuado, o sujeito perde o apetite e pode até entrar na rota da desnutrição.
A nutricionista Gabriela Vilaça, do Instituto Nacional de Câncer (Inca), explica que essa reação é mais comum na radioterapia, principalmente quando ela é direcionada para tratar tumores na região da cabeça e do pescoço.
Como a aplicação da radiação é local, as células da cavidade bucal são penalizadas, o que influencia, pelo menos por um tempo, a capacidade de sentir os sabores.
“Na quimioterapia, o efeito é sistêmico, então as alterações dependem mais da medicação utilizada”, esclarece Gabriela. A revisão americana aponta que pessoas submetidas a quimioterápicos à base de taxano relataram mais essa adversidade.
Mas o paladar não é o único obstáculo encarado no tratamento do câncer — nem a rádio e a químio as únicas terapias a surtir efeitos colaterais nesse aspecto. Náusea, vômito, diarreia, prisão de ventre, boca seca e com feridas, mudanças no olfato e falta de apetite compõem a lista de chabus.
“Tudo isso tem impacto direto na qualidade de vida, porque pode comprometer a ingestão alimentar e levar a perda de peso e massa muscular”, observa a nutricionista Josiane de Paula Freitas, do A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo.
Uma pesquisa do Inca, em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade de Groningen, na Holanda, demonstrou, após avaliar dados de 4 783 pacientes, as consequências desse cenário: 45% deles estavam com suspeita ou um quadro de desnutrição moderada e 12%, gravemente desnutridos.
“Essa situação, associada ao aumento da demanda metabólica causada pela própria doença, diminui a resposta ao tratamento e aumenta o risco de complicações e desfechos negativos”, alerta Josiane.
+ LEIA TAMBÉM: Algum alimento pode atrapalhar o tratamento do câncer?
A boa notícia é que existem truques na manga para contornar esses empecilhos e não perder a vontade e o prazer à mesa. O Inca inclusive criou o Guia de Nutrição para Pacientes e Cuidadores com orientações para lidar com as dificuldades. E tem até livro de receitas focado nessa fase, em formato impresso ou e-book.
Para superar as alterações de paladar, o principal conselho dos experts é usar e abusar de temperos: eles aguçam o sabor da refeição, e alguns tipos podem ajudar a amenizar enjoos e náuseas.
Tem macete antes mesmo de pegar garfo e faca. “Podemos estimular a sensibilidade do paladar com balas de menta, hortelã ou algumas gotas de limão antes da refeição”, ilustra o oncologista Marcelo Cruz, do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.
A nutricionista do Inca informa que alguns pacientes relatam sentir um gosto metálico ao comer. “Nesses casos, a gente orienta dar preferência aos talheres de plástico em vez dos de metal”, conta Gabriela.
Por fim, alimentos ricos em zinco e cobre, como a família das leguminosas, ovos, vegetais folhosos escuros e aveia e outros cereais integrais, auxiliam na recuperação do paladar.
Já o ressecamento da boca e dos lábios característico de quem está em tratamento é provocado pela redução da produção de saliva.
Para abrandar esse sintoma, o manual do Inca prescreve aumentar a ingestão de líquidos, incluir menos alimentos secos no menu e mastigar tudo mais devagar.
“Alguns itens instigam a salivação, como gengibre e hortelã”, destaca a oncologista Maria Del Pilar Esteves Diz, diretora do corpo clínico do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp).
Nessa toada, chupar balas, picolés ou gelo mesmo, mascar chicletes e beber água saborizada com gotas ou rodelas de limão são táticas
valiosas na rotina. “Em alguns casos, também indicamos resinas comestíveis que funcionam como uma saliva artificial”, relata Maria Del Pilar.
Por causa do ressecamento, não é incomum que o paciente sofra com aftas e feridas na boca. É importante dar atenção a isso, porque pode sero início de uma mucosite, condição associada à queda na imunidade e que costuma gerar muita dor — uma autêntica inimiga do momento de comer.
Para driblá-la, a médica Anelisa Coutinho, diretora da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (Sboc), sugere alimentos menos ácidos e mais pastosos, como sopas, purês e mingaus, e nada de pratos quentes demais.
“Para tratar a mucosite e facilitar a cura dessas feridas, podemos recorrer a aplicações de soluções orais e/ou laserterapia”, completa a oncologista.
+ Assine VEJA SAÚDE a partir de R$ 9,90
Reflexos em outros cantos
Às vezes o problema é mais embaixo e, devido à doença ou ao tratamento, ocorrem diarreias ou prisão de ventre. A resolução desses estorvos intestinais não é muito diferente da maneira habitual de tratá-los.
Para a constipação, tem que ingerir bastante líquido e alimentos ricos em fibras, sobre tudo as insolúveis — aproveitando ao máximo as cascas e os talos dos vegetais — e respeitar a hora de ir ao banheiro sempre que sentir vontade.
A diarreia, por outro lado, exige evitar, temporariamente, comidas que soltam o intestino (verduras cruas, frutas como mamão e ameixa e refeições gordurosas, por exemplo).
“Não é preciso excluir leite e derivados se a diarreia durar um curto período”, pontua Gabriela. Mas, se achar que eles estão pesando na digestão, dá para substituir por versões desnatadas, semidesnatadas ou light.
Beber muita água também entra no rol de medidas e dá pra investir em água de coco ou soro caseiro para repor os sais minerais e impedir a desidratação. Se a diarreia for muito intensa ou duradoura, é prudente contatar o médico — probióticos ou medicamentos poderão ser convocados.
+ LEIA TAMBÉM: Probióticos, um universo em expansão
Você está vendo que ideias não faltam, mas e quando o drama é a falta de apetite? A grande sacada aqui é o fracionamento da dieta. “Em vez de fazer três grandes refeições, dividimos a alimentação em pequenas porções ingeridas de cinco a seis vezes ao longo do dia”, descreve Cruz.
O Inca recomenda tentar comer de duas em duas horas, sem se preocupar em raspar o prato, mas se esforçando para consumir o que mais agradar. Pensando nisso, o conceito de comfort food (“comida afetiva”, em bom português) se ilumina durante o enfrentamento do câncer.
Afinal, nada como o prato favorito para abrir o apetite nos dias mais complicados do tratamento — dependendo da receita, só é importante alinhar com a equipe que faz o acompanhamento.
“Outra dica é selecionar e incluir nas refeições alimentos que tenham alto valor calórico e nutricional, mesmo em pequenas quantidades”, diz o oncologista do Sírio-Libanês.
Dá para fazer isso de várias formas: colocando azeite de oliva, creme de leite ou gema de ovo no purê e no mingau, misturando farinhas e farelos na vitamina, acrescentando macarrão, carne, frango ou ovo à sopa, fazendo suco com mais de uma fruta ou caprichando no recheio de tortas e pães caseiros.
Essa gama de estratégias alimentares nem sempre dá conta do recado quando o indivíduo se encontra em um estado de saúde mais frágil. Nesse contexto, suplementos nutricionais despontam como alternativa, mas sempre com a indicação de um profissional. “A suplementação pode ser caseira ou industrial, por via oral, venosa ou sondas”, informa Anelisa.
Existem inclusive produtos desenvolvidos para atender as demandas dos pacientes oncológicos, fornecendo proteína e outros nutrientes em quantidade adequada para seguir com o tratamento e preservar a massa e as forças.
Regime agora nem pensar
Como se não bastassem todos os desafios que podem pintar no momento de comer, as pessoas ainda são bombardeadas com ideias fora de contexto e fake news.
Uma delas é a história de que os carboidratos alimentam o tumor, por isso devem ser limados. Há quem se fie nisso e embarque numa dieta low carb.
Só que Maria Del Pilar afirma que o argumento não se sustenta. De acordo com a médica do Icesp, apesar de o câncer consumir mais glicose que as células saudáveis, cortar carboidratos e açúcares não vai impedir seu avanço.
Não é para se fartar de massas e doces, mas lembrar que, em um cardápio balanceado, esses ingredientes podem entrar e ajudar o corpo a obter energia.
Andrea Pereira, nutróloga do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, alerta que, uma vez que o tumor está instalado, a perda de peso e massa muscular é fator decisivo para a sobrevivência.
“O paciente não deve fazer dietas restritivas nem podemos deixá-lo desnutrido”, defende. “O ideal é equilibrar o consumo de carboidrato, um nutriente essencial ao organismo, dentro de uma alimentação saudável”, completa.
+ LEIA TAMBÉM: O novo guia de prevenção ao câncer
Outro ingrediente frequentemente acusado de estragos em matéria de câncer é a carne vermelha. “Mas a evidência científica diz respeito à prevenção, não à melhora do prognóstico”, diferencia Andrea.
Ou seja, evitar o consumo excessivo realmente soma pontos para afastar um tumor, mas, pensando no paciente em tratamento, o corte irrestrito e sem acompanhamento nutricional gera desfalques potencialmente sérios.
É que a carne é uma das principais fontes de proteína, e a falta dela contribui para a degradação física e muscular. Veja: em uma pessoa sem problemas de saúde, a produção e o desgaste das fibras que compõem os músculos fazem parte de um processo mais difícil de desestabilizar.
No entanto, quando há um tumor desatando uma luta dentro do corpo e os médicos precisam lançar mão de algumas armas, a coisa pode desandar.
Daí o indivíduo perde tanta massa e força muscular que fica com sarcopenia, um quadro associado a pioras na resposta ao tratamento em si e ao maior risco de complicações e morte. A solução para não entrar nessa é modular as refeições sem vacilar no consumo de proteína e deixar de se exercitar — na medida do possível e sempre sob supervisão!
Em um artigo publicado no periódico científico Clinical Nutrition, pesquisadores de diversas partes do mundo, incluindo o Brasil, sustentam que as proteínas vegetais são menos eficientes para repor nossas fibras musculares que as de origem animal — elas ofertam uma quantidade menor de leucina, aminoácido crítico para essa finalidade.
+ Assine VEJA SAÚDE a partir de R$ 9,90
Compare: em 100 gramas de bife bovino, há 33 gramas de proteínas; em 100 gramas de feijão, são só 8. Fora isso, quando a fonte de leucina é vegetal, o corpo a absorve menos.
A conclusão dos especialistas é: não exclua proteínas animais da dieta de um paciente oncológico. Claro que quem é vegetariano ou vegano não precisa abandonar seu estilo de vida. Só que aí o cardápio deve ser planejado junto a um nutricionista e provavelmente suplementos proteicos terão de integrar o plano.
“Durante o tratamento, podemos promover mudanças de hábito alimentar e reduzir alguns itens, não no sentido da proibição, mas da adequação”, ressalta Andrea.
Outro conselho sempre bem-vindo para vencer os percalços é diversificar os preparos. Foi por isso que o Serviço de Alimentação do Sírio-Libanês publicou seu Guia de Receitas para o Paciente Oncológico.
Além de trazer instruções para refeições saborosas e nutritivas, ele ensina a agregar ingredientes que ajudam a minimizar os efeitos adversos do tratamento.
Contar com ideias fora da caixa e o suporte de médicos e nutricionistas pode fazer a diferença na jornada contra o câncer — o que, convenhamos, vai muito além de encher o estômago.
Para contornar a náusea
O que os experts prescrevem para domar os enjoos:
+ Sem jejum prolongado
Ficar muito tempo sem comer só piora essa sensação. Use a estratégia do fracionamento da dieta, diminuindo o intervalo entre as refeições.
+ Fique longe do fogão
Tem gente que acaba nauseada ao preparar e degustar a própria comida. Peça para outra pessoa fazer e se alimente em um ambiente arejado.
+ Nada de deitar depois de comer
Melhor evitar a sesta para não penar com refluxo. O ideal é descansar sentado. Dá até para comer de pijama — afinal, conforto é regra básica.
+ Não é hora de beber
Evite líquidos enquanto come porque eles aumentam o volume do estômago, o que piora o enjoo. É preferível se hidratar com água, suco ou chá entre as refeições.
+ Cuidado com a gordura e a pimenta
Frituras e alimentos muito gordurosos, condimentados ou picantes costumam piorar a sensação de náusea. Deixe para outro momento.
+ Refresco que cai bem
Tudo que é geladinho ameniza o enjoo. Chupar gelo ou um picolé meia hora antes de comer aplaca a sensação e não sabota o apetite.
+ LEIA TAMBÉM: Embutidos: por que não dá para defendê-los
Temperos amigos
“Quando uma pessoa fica com alteração no paladar, o sabor neutro dos alimentos não consegue se impor predominando o gosto ruim”, conta a oncologista Maria Del Pilar, do Icesp. Para escapar dessa, os temperos naturais são uma ótima pedida.
Salsa, cebolinha, limão, orégano, coentro, louro, alho, cebola, manjericão e grande elenco conferem aroma, sabor e textura à comida. E são uma forma de ainda reduzir o consumo de sal e gordura.
Aliás, os profissionais sugerem fugir dos caldos industrializados.
Imunidade sem sobrecarga
Como garantir mais segurança ao corpo e às refeições
+ Lave bem as mãos
Só coma ou prepare os alimentos com mãos limpas, unhas aparadas e cabelo preso. E evite manipulá-los se estiver com anéis, brincos e pulseiras ou
machucados nas mãos.
+ Veja se está fresco
Não experimente nada que pareça estar estragado ou com um cheiro estranho e só beba água filtrada ou fervida. Fique de olho no estado e na validade dos produtos ao comprar.
+ Higienize a comida
Como ensinamos na matéria anterior, deixe de molho frutas e verduras por dez minutos em uma solução com uma colher de sopa de hipoclorito de
sódio para cada litro de água. Enxágue depois.
+ Repare na embalagem
Certifique-se de que ela não está aberta ou avariada e se é conservada na temperatura indicada no rótulo. Pode ser uma boa lavar com sabão antes de guardar.
+ Evite contaminação
Carnes e peixes são mais suscetíveis a alojar micróbios perigosos. Então mantenha-os congelados ou na geladeira e assegure um cozimento adequado — melhor nada cru.
+ Não deixe faltar
Muitas vitaminas (A, C, D, E…), assim como minerais (zinco, selênio…), auxiliam a manter a imunidade em dia. Priorize vegetais e outras fontes desses nutrientes no menu.
+ LEIA TAMBÉM: Como cultivar ervas, temperos e outras plantas em casa
Desconfie de milagres
Vira e mexe deparamos com propagandas de chás supostamente incríveis contra o câncer. Não caia numa furada dessas!
“Não existem dietas ou alimentos, até esse momento, que tenham demonstrado poder curar a doença”, afirma Andrea Pereira, nutróloga do Einstein. Algumas receitas naturais podem até ter efeitos colaterais e atrapalhar o tratamento.
“Não consuma nada de diferente antes de conversar com o oncologista e nunca abandone a terapia prescrita por uma dieta ou alimento milagroso”, frisa a médica.