A cena é a seguinte: você está na fila do banco e, de repente, um sujeito rouba seu lugar sem falar nada. Como vai reagir? Parece que não, mas uma decisão espontânea como essa — ficar quieto ou brigar — depende de uma série intrincada de fatores, como seus genes, hormônios e neurônios, o ambiente em que você foi criado, a aparência do indivíduo que entrou na sua frente, seu estado emocional naquele dia etc.
É sobre as peças biológicas e culturais que moldam o comportamento humano, dando vazão tanto a atos de maldade como de altruísmo, que se debruça o neurocientista americano Robert Sapolsky em Comporte-se (Companhia das Letras). O livro é um tijolo de conhecimento colhido em inúmeras pesquisas e disciplinas — da biologia à antropologia.
Nas mais de 800 páginas, o professor explica as bases fisiológicas dos nossos atos e omissões, analisa os comportamentos de outros primatas e suas semelhanças e diferenças em relação aos nossos — Sapolsky passou três décadas estudando babuínos na África — e reflete sobre episódios históricos que demonstram nossas facetas mais generosas, egoístas ou terríveis.
Uma obra que revela que a espécie humana definitivamente não se resume a anjos e demônios — o contexto pode fazer toda a diferença — e traz lições e provocações para nos tornarmos pessoas melhores.
Comporte-se
Autor: Robert M. Sapolsky
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 816
Confira, a seguir, um papo com o professor Sapolsky, que é neurobiólogo e primatólogo, professor da Universidade Stanford (EUA) e pesquisador do Museu Nacional do Quênia.
VEJA SAÚDE: Até que ponto a pandemia de Covid-19 é capaz de impactar o comportamento humano?
Robert Sapolsky: Acredito que há impactos enormes em nosso comportamento, e veremos as consequências psicológicas e sociais deste período por muitos anos. O único equivalente em que consigo pensar é a Grande Depressão, que atingiu os Estados Unidos em 1929. Ela foi um dos maiores eventos a moldar meus pais nas pessoas que eles se tornaram, e acho que algo parecido vai acontecer com a Covid-19.
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Crises como a que atravessamos tendem a agravar o pior lado da nossa biologia e da nossa sociedade?
Penso que depende imensamente do tipo de crise. Se os nazistas bombardeiam Londres toda noite, com consequências devastadoras, isso faz as pessoas [da cidade] identificarem um inimigo singular que está atacando indiscriminadamente todo mundo, o que traz à tona o nosso melhor. Foi o que aconteceu em diversas circunstâncias, a exemplo do 11 de Setembro na cidade de Nova York.
Mas com a Covid-19 é diferente. Ela é uma ameaça invisível, o estranho próximo de você pode infectá-lo e a epidemia não é justa com suas vítimas. As pessoas mais ricas são capazes de se proteger quase que totalmente, enquanto os pobres são devastados pela doença, e o governo Trump [nos EUA] trabalhou efetivamente para transformar os mais frágeis em um bode expiatório. Então, esse foi um período terrível nesse sentido.
Qual é o aspecto da neurociência e do cérebro humano que mais intriga o senhor atualmente?
É a neurobiologia da empatia, ou seja, como nosso cérebro busca decidir se uma pessoa conta como “Nós” mais do que como “Eles”, e se você é capaz de sentir a dor do outro e imaginar o mundo através dos olhos dele.
Testemunhamos pelo mundo nos últimos anos movimentos e lideranças que se baseiam muito nesse discurso “Nós” versus “Eles”, que o senhor examina no livro. Isso seria um retrocesso à luz da nossa evolução comportamental e das atrocidades do último século?
Bem, ambos os nossos países tiveram um azar terrível nesse aspecto — e eu espero que o Brasil se veja livre do seu líder assim que possível. Acredito que há um retrocesso tremendo para o mundo, e acho que essa é uma tendência que tende a piorar nos próximos anos.
O senhor acredita em um futuro em que comportamentos ruins ou criminosos poderão ser atenuados ou combatidos com ferramentas médicas como estimulação craniana ou edição genética?
Vai um longo, longo tempo até que isso possa acontecer de fato. No entanto, esse é um reino em que as intervenções na própria sociedade serão muito mais eficazes, e os resultados chegam mais cedo. Só que há um viés que coloca de uma forma mais chamativa e excitante usar técnicas para alterar o cérebro de uma pessoa do que alterar, na realidade, como a sociedade trata algumas dessas pessoas.
No livro, o senhor analisa um antigo dilema filosófico entre dois pensadores. De um lado, Thomas Hobbes e a noção de que o homem é o lobo do homem; do outro, Jean-Jacques Rousseau e a ideia de que a sociedade corrompe o homem, expressa na construção do “bom selvagem”. Pensando em nossa sociedade pós-pandêmica, o senhor ficaria com Hobbes ou Rousseau?
Cerca de dois terços de Hobbes e um terço de Rousseau. Depende do dia.