“Desde criança, nas diversas experiências com os parentes, eu já sentia uma ansiedade diferente do que supunha ser normal. Por volta dos 6 ou 7 anos, sem saber muito bem o porquê, evitava contatos. Tudo piorou no ensino médio. Me sentia desconfortável só de estar em sala de aula e comecei a ter reações físicas como rubor facial, suor excessivo e até tremores quando virava o foco das atenções. Não conseguia apresentar nada para a turma.”
Mesmo sofrendo desde pequeno, Gabriel* só foi diagnosticado com transtorno de ansiedade social — a fobia social — aos 18 anos e após passar por duas médicas diferentes.
Veja bem: ter certo nível de ansiedade diante de situações que envolvem outras pessoas é natural. Isso nos instiga a estudar ou ensaiar para mandar bem num seminário na faculdade ou numa entrevista de emprego.
Mas, quando as interações despertam um temor intenso demais, e a pessoa fica mal e faz de tudo para fugir dos encontros, a fobia social bota suas garras de fora.
E, num cenário de restrições para o convívio como o da pandemia, o receio do outro se tornou um dilema ainda mais cruel e presente.
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O que define o transtorno propriamente dito não é evitar situações públicas em si, mas o motivo dessa repulsa.
“A questão básica do fóbico social é se sentir avaliado pelos outros o tempo inteiro”, esclarece o psiquiatra Antonio Egidio Nardi, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Ele acha que vai agir de forma ridícula, que será motivo de crítica ou deboche. Por isso se preocupa com a forma que fala e se comporta. E o temor do julgamento o faz evitar outras pessoas”, detalha.
Gabriel sente isso na pele: “Eu sempre tive um autojulgamento ruim do meu desempenho e acredito que as pessoas vão me olhar diferente por isso. O sentimento de insuficiência, misturado à baixa autoestima, me afasta dos outros”, desabafa o rapaz, hoje com 29 anos.
Esse medo de uma suposta crítica é tão característico do transtorno que alguns defendem que ele deveria batizar a condição. “Há teóricos que sugerem que a fobia social seria mais clara e bem compreendida se fosse chamada de fobia de avaliação”, conta o psicólogo Mario Ponte, especialista em terapia cognitivo-comportamental (TCC), de Teresina.
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O que delata a fobia social?
Apesar dos vários níveis do transtorno, existem características em comum na maioria das vezes
SINTOMAS PSICOLÓGICOS:
Timidez extrema
Ter muita dificuldade para trocar olhares e cumprimentos é um sinal. Ser tímido não é problema, mas sofrer com as interações é.
Fuga de situações
Um exemplo comum é fazer o trabalho em grupo mas faltar no dia da apresentação. O fóbico social se esforça para fugir do público.
Medo de julgamento
A autopercepção costuma ser ruim, gerando medo excessivo de não se adequar a normas ou expectativas alheias.
Projeção irreal
Por causa desse receio, é comum o fóbico social fazer suposições exageradas, em que sempre vai errar e ser ridicularizado.
SINTOMAS FÍSICOS:
Enjoo
Náusea, embrulho no estômago, hipersensibilidade a ruído e falta de ar são manifestações típicas da fobia social.
Suor excessivo
Sintoma clássico de ansiedade. Nosso cérebro reconhece a situação como um “perigo” e prepara o corpo para a fuga.
Taquicardia
O nervosismo faz o coração bater mais acelerado e a respiração se intensifica. Também é sinal de ansiedade.
Dores
Na cabeça, na barriga ou no corpo todo: os incômodos tendem a aparecer próximos a uma situação de gatilho do fóbico.
Diarreia
Transtornos psíquicos mexem com o eixo intestino-cérebro. Devido a essa conexão, não são raros sintomas gastrointestinais.
Ter pavor da opinião alheia é o que difere o quadro de outros como a agorafobia. Os dois levam o indivíduo a fugir de grupos e multidões, mas, enquanto o fóbico social receia o julgamento de quem está em volta, o agorafóbico teme ficar preso naquele ambiente e não conseguir sair de lá.
Diferenciar as coisas é essencial para o diagnóstico e o tratamento. Até porque ambas as fobias podem resultar em prejuízos sérios — ainda mais no atual contexto de pós pico da pandemia e retomada das atividades presenciais.
Quem tem um medo patológico sempre procura fugir de seu “algoz”. Na aracnofobia, o sujeito quer passar longe de aranhas e dos lugares em que elas podem aparecer.
Na ansiedade social, faz de tudo para não falar em público, procurar autoridades, conversar com o sexo oposto, realizar algo na frente dos outros… Enquanto na agorafobia não existe a mínima chance de encarar um show ou a espera de um banco lotado.
Então imagine as consequências de fugir de outras pessoas: “Fóbicos sociais se casam menos, têm poucos amigos, menores conquistas acadêmicas e acabam tendo renda inferior”, exemplifica o psicólogo João Paulo Machado de Sousa, professor do Programa de Pós-Graduação em Saúde Mental da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP).
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“Algo que a fobia me tirou foi o trabalho. Tentei focar na parte acadêmica, achando que poderia me dar bem, mas não tive sucesso. Queria ser professor, como muitos da minha família, mas não fui capaz de me expor dessa forma nem de concluir uma licenciatura. Em função disso, ainda não tive experiências trabalhando”, relata Gabriel.
Apesar de estar há 11 anos em tratamento psicológico e medicamentoso, o rapaz ainda é polido pela fobia. “Eu tenho pouca esperança de superá-la, por isso acho que preciso me adequar. Agora estou estudando farmácia, e quero ir para a área de análises clínicas, um campo que não demanda tanta comunicação. Estou tentando me adaptar”, conta.
Medo é algo natural, uma emoção que nos coloca a tomar decisões. Graças a ele, ficamos atentos ao atravessar uma rua ou participar de um evento com muita gente. Já a fobia é um transtorno psicológico, um temor desproporcional, irracional e persistente capaz de gerar prejuízos. Entendendo na prática: um dos medos mais disseminados entre adultos é o de falar em público. Mas a gente tenta dar um jeito de encará-lo. O fóbico social, por sua vez, não consegue de jeito nenhum, e isso resulta em muito sofrimento.
Existem níveis de gravidade para qualquer tipo de fobia, incluindo a social. Tem gente que não sofre como Gabriel, outros enfrentam desafios e sintomas parecidos.
Quando o problema é mais pontual ou restrito a situações específicas, como se expressar diante de um público, os especialistas até falam em fobia social circunscrita.
Já a fobia social generalizada gera pânico em qualquer momento que possa ativar a sensação de estar sendo julgado, como entrar numa sala de aula quando os demais alunos estão sentados, pedir um prato no restaurante ou até mesmo apertar o botão do ônibus solicitando a parada. Gabriel se encaixa aqui.
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Ainda que a condição tenha um caráter único e pessoal, alguns pesquisadores propõem uma abordagem mais social do fenômeno.
O psiquiatra e psicanalista Julio Verztman, professor do Instituto de Psicologia da UFRJ, escreve, no artigo Vergonha, Honra e Contemporaneidade, que o aumento da incidência da fobia social — ela hoje atingiria 13% da população — se deve a mudanças na formação e no comportamento da sociedade, que vem exigindo exibicionismos de toda e qualquer pessoa.
Ser bem-sucedido está cada vez mais atrelado a performance, autenticidade e desinibição, e essa cobrança aumenta o pavor do olhar alheio.
O que já era ruim acabou se tornando torturante. E detalhe: se já era assim em 2005, quando Verztman escreveu o artigo, imagine agora, numa era ditada por influencers e curtidas nas redes sociais.
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Em seu mestrado pela USP, a psicóloga Karoline Rochelle mergulhou na aplicação da psicanálise como forma de tratamento para o transtorno de ansiedade social. Ela explica, no trabalho, que essa vertente enxerga a fobia social como uma tentativa do indivíduo de solucionar um conflito psíquico. O medo da exposição aos outros se deve a um superego (a dimensão controladora da mente) muito rígido, que projeta esse olhar reprovador nas outras pessoas. Seria um “delírio de observação”, que pode ser controlado nas sessões de psicanálise.
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O gatilho pandemia
É consenso na comunidade científica que os transtornos mentais têm uma origem tríplice: predisposição genética, inclinações de personalidade e influências ambientais e sociais.
A pandemia de Covid-19, que obrigou o mundo a ficar mais recluso por pelo menos dois anos, tornou-se um gatilho para o aparecimento ou agravamento de distúrbios psíquicos.
“Ficar preso em casa e sofrer com o luto ou a própria experiência da doença, que levou tantas pessoas à internação, pode ser uma vivência traumática e desencadear transtornos de ansiedade, depressão e fobias”, ressalta Sousa.
Ainda assim, esse mundo mais fechado imposto pela pandemia não deixou de ser algo confortável para muitos fóbicos sociais.
Ora, eles não eram mais obrigados a se expor em situações públicas cara a cara e podiam ficar em casa sem serem julgados por isso. Só que a reinserção em sociedade, com a retomada das atividades presenciais, surge como um novo desafio.
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E um dos primeiros “entraves” é a desobrigatoriedade gradual do uso das máscaras.
Segundo um estudo da Universidade de Waterloo, no Canadá, esses acessórios eram vistos como uma estratégia de auto-ocultação, permitindo que pessoas com ansiedade social escondessem falhas que julgavam ter.
Tantas vezes, o desejo de passar despercebido — numa ida ao mercado, por exemplo — motivava mais a utilização da máscara do que a necessidade de se proteger do vírus. “Botar a cara no sol”, como se diz, não será um processo fácil para essa gente. Literalmente.
“Nesse período, muitos fóbicos sociais que estavam em tratamento acabaram perdendo o acompanhamento e os avanços que tinham feito. Daí é necessário começar tudo de novo”, observa Nardi.
Sousa concorda e acredita que o transtorno possa ser exacerbado após o tempo de reclusão: segundo o professor da USP de Ribeirão Preto, quem esteve mais isolado nesses meses todos tende a sofrer na volta à vida presencial.
Bem, pesquisas pelo mundo todo não deixam negar que problemas como ansiedade e depressão ficaram ainda mais em alta com a pandemia. Mas será que os temores e as mudanças que vieram no seu rastro deixarão mais pessoas com fobia da vida em sociedade?
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Antes de tudo, é preciso entender que o receio de voltar a reuniões de trabalho, bares e festas é absolutamente legítimo e normal — inclusive para quem não tem fobia social.
“Durante a pandemia, todos nós ficamos com um medo aumentado e justificado de uma contaminação, o que não quer dizer que todos desenvolvemos algum transtorno. O risco era real, precisávamos ter mais cuidados ao estar com as pessoas e evitar contatos e compartilhamentos”, justifica Sousa.
E, mesmo agora, com a vacinação em curso, tudo bem ainda ter medo! “O vírus segue circulando, e ele pode adoecer e matar. Não é irracional temer um ambiente com pessoas e o risco de se contaminar”, avalia Ponte. “O transtorno psíquico aparece quando esse comportamento passa a gerar sofrimentos e prejuízos ao indivíduo”, conclui o psicólogo.
Essa é a fronteira, às vezes tênue, entre o medo normal e o patológico: quando essa emoção vira algo constante, desproporcional e paralisante.
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Se a pessoa ainda hoje não consegue sair de casa para realizar atividades simples como ir à farmácia ou ao supermercado, mesmo vacinada e de máscara, é sinal de que ela talvez precise de ajuda profissional.
Mas isso não significa, como tanta gente vem dizendo por aí, que ela está com fobia social.
“A fobia social não se relaciona com o medo do contágio em si. E existem outros transtornos que se desencadearam mais com a ameaça do coronavírus, como quadros obsessivo-compulsivos e a própria fobia de contágio”, diferencia Sousa.
A peculiaridade desta pandemia fez até especialistas estrangeiros criarem um nome próprio para o pavor do vírus, a “coronofobia”.
Ela engloba o medo persistente de pegar o patógeno, ficar gravemente doente, ter sequelas, morrer, perder ou contaminar entes queridos ou enfrentar repercussões financeiras da crise global.
Reflita: quem não ficou agoniado com uma dessas situações nos últimos dois anos? De novo, o problema surge quando a fobia imobiliza e faz o corpo e a mente sofrerem.
E não são só os adultos que padecem com o “efeito pandemia”. Ela gerou uma série de preocupações com o desenvolvimento social de crianças e adolescentes.
“Existem evidências de que aquelas que nasceram nesse período apresentam mais atrasos em termos de desenvolvimento porque isso depende muito dos estímulos sociais”, conta o psiquiatra da infância e adolescência Guilherme Polanczyk, professor do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP.
Mas, contrariando a angústia dos pais, esse não é um impacto determinante nem algo que obrigatoriamente o pequeno vá levar para o resto da vida.
“Não se trata de algo que não possa ser recuperado, pois o desenvolvimento das crianças é muito dinâmico e, assim que o convívio é restabelecido, a maioria tende a responder bem às novas experiências”, tranquiliza Polanczyk.
No entanto, os mais novos que já sofriam com a fobia social antes da pandemia podem penar, a exemplo dos adultos, com a retomada dos contatos presenciais.
“A acomodação no período foi grande. Essas crianças criaram suas próprias bolhas e utilizaram suas estratégias para evitar os outros. E, agora, estão sentindo uma dificuldade muito maior de voltar à escola”, afirma o psiquiatra Luis Augusto Rohde, professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
“A pandemia foi um importante gatilho para a depressão em crianças e para a piora de sintomas do transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), mas não para a fobia social. Na verdade, ela foi um fator de tamponamento para quem tinha o transtorno, porque deu uma justificativa socialmente aceita para evitar as interações”, esclarece o especialista em saúde mental de crianças e adolescentes.
Toda essa discussão vem à tona para mostrar que não dá para normalizar a fobia social ou outros problemas que travam a convivência entre as pessoas. Inclusive porque tem tratamento!
Ele contempla de psicoterapia a prescrição de medicamentos. “Com a abordagem certa, dá para melhorar a qualidade de vida e o desempenho social”, garante Nardi.
E Sousa completa: “Como todo quadro de transtorno mental, quanto antes detectarmos, maior a chance de um bom prognóstico e de impedir que a situação se agrave”. A fobia social não é uma condição eterna irremediável. É possível viver com os outros sem tanto medo.
O plano de superação
A terapia cognitivo-comportamental (TCC) é uma das abordagens mais efetivas para o tratamento da fobia social. Veja o que ela contempla:
Técnicas de relaxamento
São úteis para controlar os sintomas físicos. Elas ajudam a aliviar a tensão e as reações provocadas pela ansiedade. Aos poucos, o fóbico não sofre tanto antes de enfrentar situações como falar em público.
Treinamento de habilidades
Aprender a se aproximar das pessoas pode começar pelo básico: conseguir dar um bom-dia ao entrar no elevador e olhar no olho de alguém em uma conversa até frequentar locais cheios de gente.
Exposição gradual
Entrar em situações que provocam o temor é uma tática para entender o que se passa no momento. Com orientação profissional, isso permite ressignificar aquele medo irreal e se dessensibilizar para seguir adiante.
Reestruturação cognitiva
O receio da opinião alheia vem junto de pensamentos ruins. A ideia da psicoterapia é moldar o cérebro para que as projeções de medo sejam percebidas como ilusórias e as más sensações não venham toda hora.