É preciso criar anticorpos emocionais para lidar com traumas
Autora de um livro recém-publicado no país, psicóloga expõe o impacto de pequenos traumas na rotina — e como se defender deles
Quando se fala em trauma, a imagem que costuma vir à cabeça é a de uma criança que sofreu um baque ou uma perda marcante — ou a de um adulto que passou por um episódio de violência. Mas não são apenas eventos de grandes proporções (reais ou psíquicas) que abalam a saúde mental.
Existem também os “pequenos traumas”, conceito criado pela psicóloga britânica Meg Arroll e destrinchado em uma obra que chega ao Brasil pela Vestígio. O termo abrange microagressões no cotidiano que ferem o estado emocional e são capazes de deixar cicatrizes.
Pode ser um ambiente de trabalho opressor, um relacionamento dominador, preconceitos mascarados na fila do mercado ou na sala de aula… O pior é que esses traumas menores têm efeito cumulativo e chegam a abrir as comportas de uma ansiedade ou depressão.
Felizmente, dá para se blindar deles. E é o que Meg mostra em seu livro — e na entrevista a VEJA SAÚDE.
Pequenos traumas (Vestígio)
VEJA SAÚDE: Muita gente vivenciou grandes traumas durante a pandemia. Acredita que os pequenos traumas também ficaram mais comuns?
Meg Arroll: Sim, de fato, especialmente na forma de fadiga por compaixão e por uma resposta contínua a uma situação de estresse. Pesquisas com profissionais de saúde têm mostrado que podemos ficar entorpecidos diante do sofrimento alheio. É uma forma de autoproteção emocional conhecida como fadiga por compaixão.
No entanto, durante a pandemia, muitas pessoas começaram a experimentar esse fenômeno e a relatar um profundo sentimento de culpa por desviar o olhar das coisas tristes, como os noticiários com o crescente número de casos da doença. Isso impactou bastante gente de uma maneira significativa, assim como o estresse constante de viver durante uma pandemia.
Nós iremos lidar com as consequências à saúde mental da crise da Covid-19 por algum tempo. E o primeiro passo nesse sentido é nos conscientizarmos sobre as maneiras que essa experiência afetou cada um de nós.
Quais seriam os principais “anticorpos emocionais”, para usar um conceito seu, que podemos desenvolver na vida adulta?
Fico feliz com a sua pergunta, porque, às vezes, podemos ter a impressão de que esses anticorpos emocionais se restringem à infância e ao início da vida, mas esse não é o quadro completo. Podemos realmente desenvolvê-los na vida adulta em resposta a novos ambientes, interações e experiências. Um dos mais visíveis é o local de trabalho. Podemos encarar pequenos traumas intensamente desafiadores nesse contexto, particularmente no que se refere a microagressões.
Assim, aprender novas habilidades nos ajuda a enfrentá-las com mais assertividade e a impor limites. Mas a oportunidade de criar anticorpos emocionais não se restringe à carreira. Relacionamentos de todos os tipos podem propiciar essas situações, e nós sabemos agora que é possível ter a capacidade de alterar nossas relações de apego através de experiências e sessões de psicoterapia. Além disso, existem transições específicas na vida que só ocorrem mais tarde, e devemos usá-las para fortalecer nosso sistema imune psicológico.
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Como avalia o peso da internet nessas agressões mentais?
Há numerosos estudos demonstrando uma associação entre o tempo dedicado a atividades online e dificuldades do ponto de vista da saúde mental, como pensamentos ansiosos e mau humor. Os seres humanos são programados para fazer comparações entre nós e os outros — o que foi vital para sobrevivermos avaliando rapidamente nossos pontos fortes e fracos em um episódio de luta ou fuga.
Esse mecanismo inato de sobrevivência nos serviu bem durante a evolução para enfrentar oponentes, mas situações desse tipo se tornaram relativamente raras na história recente. Nos dias de hoje, esse mecanismo segue o mesmo, só que somos confrontados com pontos de referência e comparações sem fim nas mídias sociais. Com tantas referências, torna-se impossível não se sentir menos que os outros das mais diversas formas e checar as redes se transforma em algo viciante à medida que, paradoxalmente, nos tentamos sentir melhor.
Uma das principais atividades que conduzo junto aos meus clientes e pacientes, portanto, é um detox digital, e eles se surpreendem com o impacto da dependência de internet em sua vida. O mundo digital oferece muitas oportunidades, mas devemos nos questionar sempre se o seu uso está nos fazendo bem. Do contrário, é preciso refletir e realizar algumas mudanças no jeito de interagir com a tecnologia.
Acredita que as novas gerações sejam mais suscetíveis aos pequenos traumas e às suas consequências?
Os desafios que as novas gerações encaram diferem das anteriores sem dúvida alguma. Primeiro, temos manchetes e notícias constantes e ininterruptas que são projetadas para desencadear uma resposta de medo. Acontece que coisas ruins estão sempre acontecendo e sempre ocorreram. O que precisamos agora é encontrar formas de gerenciar esse fluxo constante de informações para dar o devido suporte à saúde mental e ajudar quem mais necessita desse apoio.
A geração dos nativos digitais não conhece outro modo de viver e estamos vendo as consequências dessa incapacidade de se desligar. No entanto, pessoas jovens têm mais consciência da importância de olhar para a saúde mental e estão mais abertas a discutir isso. Esse é um aspecto positivo das culturas com alta conectividade. Contudo, por vezes nos sentimos ainda mais isolados se não estabelecemos uma conexão emocional mais profunda.
Os jovens têm grandes expectativas de alcançar um padrão financeiro que avançou nas gerações anteriores, mas agora a vida é mais dura, e atingir os marcos do relógio social (sair de casa, ter o primeiro emprego, criar filhos…) se tornou mais difícil em relação ao que viveram seus pais e avós. Quando as pessoas descobrem que a realidade e como a vida deveria ser diferem substancialmente, nasce a sensação de um pequeno trauma.
Na sua visão, a cultura corporativa predominante é de essência traumática?
Atualmente, nossos valores derivam tanto da carreira e do trabalho a ponto de muitos de nós não termos mais consciência do seu conjunto de valores pessoais. O letramento emocional em termos de autorreflexão não é ensinado nas escolas, então não surpreende que estejamos caindo numa corrida de ratinhos, o que eu chamo de uma “roda de esforço”. Essa é a percepção do “Eu só serei feliz quando…” tiver uma promoção, aumentar o salário, comprar aquela propriedade… É isso que nos mantém lutando e nos coloca em um estado de esforço para sustentar as corporações.
Só que esse “quando” nunca vem, porque as coisas não foram desenhadas para essa finalidade. Pelo contrário, indivíduos entram pela minha porta com altas cargas de ansiedade, perfeccionismo além da conta e síndrome do impostor [mesmo se dando bem na carreira ou na vida, a pessoa se acha uma farsa]. Esse tipo de ambiente profundamente competitivo também é um terreno fértil para microagressões, pois vieses implícitos interagem com a necessidade de se destacar da multidão, resultando, com frequência, na ocorrência de pequenos traumas.