Azia, indigestão, dor no peito e tosse seca após as refeições. Quem sofre com o refluxo gastroesofágico — que nada mais é que o retorno frequente do suco gástrico do estômago para o esôfago e, às vezes, até a boca — conhece bem esses sintomas. E não é pouca gente! Estima-se que ele atinja 12% da população, ou seja, ao redor de 25 milhões de brasileiros.
O refluxo em si pode até ocorrer de vez em quando e ser considerado normal — imagine se empanturrar de feijoada e ir deitar logo em seguida —, mas, quando a reação é crônica e atrapalha a qualidade de vida, vira doença pra valer. Ela é causada por alterações anatômicas, como uma falha na musculatura final do esôfago (a hérnia de hiato), ou condições associadas ao estilo de vida.
“Temos visto um aumento nos casos, e isso está ligado diretamente aos números alarmantes do excesso de peso e da obesidade no país, que já afetam cerca de 70% da população”, conta o gastroenterologista e endoscopista digestivo Newton Teixeira dos Santos, membro da Câmara Técnica de Endoscopia Digestiva do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro e coordenador do Setor de Endoscopia Digestiva de três hospitais da Rede D’Or na capital fluminense. “Os quilos a mais estão relacionados ao aumento da pressão dentro do abdômen, o que favorece o refluxo”, explica.
A piora no padrão de alimentação, cada vez mais recheada de bebidas gasosas e alimentos ultraprocessados e condimentados, também contribui com a doença que contraria as leis da gravidade. Assim como a correria e o estresse na rotina, que nos levam a burlar regras que ajudam a evitar ou a melhorar a situação: mastigar melhor a comida, respeitar a saciedade, jantar mais cedo e não se deitar logo depois, praticar exercícios físicos, parar de fumar…
A pandemia do coronavírus, aliás, parece ter bagunçado ainda mais as coisas nesse sentido. “Com o home office, muita gente está comendo na mesma mesa em que trabalha, sem dar atenção ao prato ou à mastigação. Sem falar que o crescimento nos pedidos de delivery pode refletir um acesso ainda maior a refeições não tão saudáveis”, elucida a cirurgiã do aparelho digestivo Vanessa Prado, do Centro de Especialidades do Aparelho Digestivo do Hospital Nove de Julho, em São Paulo, e membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia do Aparelho Digestivo (SBCD).
As medidas de isolamento social, tão necessárias para deter o vírus, também resultaram em mais sedentarismo e ganho de peso, condições que, segundo os estudos, só botam lenha na fogueira do refluxo.
Outro fator pode explicar o crescimento no número de pessoas diagnosticadas com refluxo: uma mudança no olhar dos médicos. “Hoje percebemos que há vários sintomas menos característicos que estão ligados à doença”, afirma Fernando Wolff, chefe do Serviço de Gastroenterologia e Cirurgia do Aparelho Digestivo do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. “Inicialmente, apenas a sensação de queimação no peito ou o retorno de líquido para o esôfago ou até a boca eram considerados sinais de refluxo. Sabemos agora que muitos indivíduos que nunca tiveram azia apresentam o problema, que se manifesta também por dificuldade ou dor ao engolir, desconforto no peito, sensação de bola na garganta, salivação excessiva, tosse crônica e rouquidão”, completa o especialista.
Só que, na população em geral, nem os sintomas típicos da condição são plenamente conhecidos. Foi o que mostrou uma pesquisa realizada pela empresa de inteligência de mercado GfK a pedido da farmacêutica Takeda. Entre 1 773 brasileiros entrevistados, 28% relataram conviver com algum indício de refluxo, embora não o relacionem à doença. Mais: seis em cada dez participantes desconheciam a doença do refluxo gastroesofágico. Outro dado preocupante é que 40% dos respondentes declararam não fazer nada para combater o mal-estar característico do quadro, mesmo que ele seja muito incômodo.
Tudo isso, somado à automedicação sem investigação e orientação profissional, é capaz de mascarar a existência da doença, que fica sem diagnóstico e tratamento adequado. O cenário é inquietante para os médicos quando se leva em conta um mapeamento conduzido pela Federação Brasileira de Gastroenterologia (FBG) com 3 mil pessoas: ele indica que 51% dos brasileiros sofrem com sintomas de refluxo semanalmente.
O desconhecimento e o menosprezo pelas manifestações do problema fazem com que muita gente simplesmente vá tocando a vida sem dar bola a ele até virar refém de suas complicações. “No longo prazo, o refluxo pode evoluir para uma inflamação severa do esôfago, o estreitamento do órgão, que chamamos de estenose esofágica, e úlceras na região”, descreve o gastrocirurgião e endoscopista Eduardo Grecco, professor e coordenador do Serviço e da Residência Médica de Endoscopia da Faculdade de Medicina do ABC, na região metropolitana de São Paulo.
Pensa que acabou? “Quando a mucosa que reveste internamente o canal é cronicamente atingida pelo conteúdo ácido do estômago, ela se modifica e se torna mais resistente, uma condição conhecida como esôfago de Barrett e que aumenta o risco do surgimento de um câncer ali”, alerta o cirurgião do aparelho digestivo e endoscopista Flavio Heuta Ivano, professor da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e diretor clínico do Hospital Sugisawa, em Curitiba. Não bastasse a maior propensão a um tumor, cujo tratamento pode exigir cirurgias mais drásticas, o refluxo crônico ainda chega a prejudicar a voz e até os dentes.
Um elo com a Covid-19?
Em tempos de pandemia, um estudo recém-divulgado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) aponta uma nova complicação que estaria associada à doença do refluxo e ao quadro do esôfago de Barrett: o agravamento da infecção pelo coronavírus. Pois é, até ele! De acordo com os autores do trabalho, isso acontece porque a alteração no pH do esôfago colaboraria para a elevação da carga viral nesses indivíduos.
“A agressão provocada pelo ácido nesse órgão induziria a um aumento na expressão do gene responsável por codificar a proteína à qual o vírus se liga nas nossas células. Assim, as células do esôfago se tornariam mais suscetíveis à infecção”, destrincha Teixeira dos Santos. Seguindo esse raciocínio, os portadores de refluxo crônico correriam maior risco de ver o Sars-CoV-2 se multiplicar e agravar a situação, ficando sujeitos a quadros mais sérios de Covid-19.
Para os especialistas ouvidos por VEJA SAÚDE, o estudo coloca mais uma peça dentro do quebra-cabeça de uma doença nova, sobre a qual ainda faltam muitas respostas. Por isso, na visão deles, o achado deve ser encarado com certa cautela. “São dados preliminares e, como bem destacado pelos próprios autores, eles necessitam de confirmação por pesquisas futuras”, observa Wolff.
Vanessa Prado chama a atenção para outro ângulo dessa história. “Muitos casos de Covid-19 com evolução desfavorável estavam ligados a comorbidades como a obesidade, que é relativamente comum entre pacientes com refluxo”, analisa a cirurgiã. Ou seja, a mistura de fatores de risco pode confundir ou até mesmo se somar, contribuindo para o agravamento da infecção. Grecco, que também atua no Instituto EndoVitta, na capital paulista, ressalta que, no momento, estão em curso outras investigações pelo mundo que sinalizam essa relação.
Sentir queimação ou azia uma hora ou outra é normal, mas, se isso se repete com certa frequência ou incomoda demais, não tem por que evitar uma consulta com o médico e partir para o tratamento. Ter atitude é importante para o controle do refluxo inclusive porque ele começa com a mudança de hábitos. “As recomendações variam de acordo com os sintomas e os achados dos exames, mas todos os pacientes são orientados a mastigar bem os alimentos, melhorar a postura na hora da refeição, não comer e deitar-se em seguida e dormir com a cabeça mais elevada que o corpo”, resume Vanessa.
A alimentação em si também precisa passar por ajustes. Não é indicado fazer refeições muito volumosas, especialmente à noite, ou ingerir em grande quantidade itens gordurosos ou condimentados, pimenta, chocolate, café e bebidas alcoólicas e gasosas, por exemplo. Já que o excesso de peso anda de mãos dadas com o refluxo, manter um cardápio equilibrado, tanto em quantidade como em qualidade, é um dos pilares do tratamento.
Em muitos casos, essa repaginação na rotina é suficiente até para resolver a parada. Isso foi comprovado por um estudo publicado neste ano pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, focado na relação entre estilo de vida e doença do refluxo gastroesofágico. Os pesquisadores, que começaram o trabalho lá em 1989 com dados de 116 671 mulheres americanas, pediam que, a cada dois anos, as voluntárias respondessem a um questionário sobre a saúde geral, com perguntas envolvendo índice de massa corporal (cálculo obtido da divisão do peso pela altura ao quadrado), prática de atividade física, uso de remédios, tabagismo e histórico de doenças.
Além disso, elas tinham sua dieta avaliada a cada quatro anos e foram interrogadas sobre a presença de refluxo ou sintomas como azia quatro vezes ao longo desse período. Os dados da pesquisa não deixaram dúvidas de que mudanças na alimentação e em outros hábitos podem protagonizar o tratamento em boa parte dos casos. Perder peso, largar o cigarro, fazer refeições mais balanceadas… Pelas contas dos médicos de Harvard, cuidados desse tipo chegariam a reduzir em 37% o risco de ter de conviver com o refluxo.
Isso não significa que outras abordagens não tenham de entrar em jogo. Tem gente que, mesmo seguindo rigorosamente as medidas comportamentais, não encontrará alívio. Nesses casos, os especialistas podem lançar mão de remédios. Em geral, eles fazem parte de dois grupos: os que controlam a produção de ácido no estômago e os que estimulam o esvaziamento gástrico. “Muitas vezes, esses medicamentos precisam ser utilizados continuamente ou no longo prazo”, afirma Wolff.
Para algumas pessoas, a situação só se resolve no bisturi. Isso pode ocorrer quando o paciente não responde aos comprimidos, tem frouxidão no esfíncter que fica entre o esôfago e o estômago ou sofre de hérnia de hiato, que acontece quando parte do estômago escapa por um orifício presente no músculo do diafragma no tórax (o hiato) e aperta o esôfago. A cirurgia costuma ter boas taxas de sucesso.
Nos últimos meses, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou no Brasil um novo tratamento, que alarga o rol de opções dos médicos, antes restrito a remédios e cirurgias. É a (prepare-se para o nome) fundoplicatura transoral sem incisão. “Ela é feita por via endoscópica e utilizada para reconstruir a anatomia alterada da válvula que evita a passagem do ácido do estômago para o esôfago”, descreve Ivano.
“Em pouco mais de 24 horas, o paciente já consegue voltar às suas atividades normais. Só precisa fazer dieta líquida por cinco dias, que fica pastosa por cerca de mais cinco dias, e depois pode retornar à alimentação tradicional”, conta Grecco, que comandou a primeira intervenção do gênero na América Latina, realizada no dia 30 de janeiro de 2021 em São Paulo.
Segundo ele, o tratamento endoscópico já é empregado com resultados positivos nos EUA e na Europa. Notícia boa, mas que só terá impacto se prestarmos atenção no nosso corpo e, diante daqueles sintomas, procurarmos o médico.
Refluxo passageiro
Em algumas fases da vida, ele é muito mais frequente, só que tende a desaparecer sozinho. Uma delas é a primeira infância. Nos recém-nascidos, o sistema de barreira realizado pelo esfíncter do esôfago ainda não é tão maduro. Fora que os bebês se alimentam apenas de líquidos e ficam um bom tempo deitados. Alguns sofrem mais com o refluxo do que outros, mas a maioria supera essa fase naturalmente por volta dos 12 meses de idade.
Entre 20 e 50% das grávidas também encaram o problema. Nelas, o refluxo tem duas origens: mecânica, pela presença do feto e crescimento da barriga; e hormonal, que pode deixar o esfíncter menos eficiente. Quando a criança nasce, passa!
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