O periódico científico The Lancet acaba de publicar um retrato global sobre doença renal crônica: em 2017, foram computados cerca de 700 milhões de pessoas com a condição pelo mundo e 1,2 milhão de mortes em função do problema. Só no Brasil temos hoje 10 milhões de cidadãos convivendo com o comprometimento dos rins.
“Vivemos uma epidemia, com grande impacto na saúde e na qualidade de vida dos pacientes”, diz o nefrologista Alexandre Cabral, do Instituto de Saúde do Rim, em Campo Grande (MS). Por aqui, o número de indivíduos em diálise, ou seja, usando uma máquina para filtrar o sangue no lugar dos rins que não funcionam direito, aumentou de 40 mil em 2000 para 120 mil em 2017. Mas será que a população está ciente dos riscos de negligenciar os cuidados com essa dupla de órgãos, responsável por retirar as impurezas do sangue, controlar a pressão e produzir hormônios e vitaminas?
Para traçar um panorama a respeito, a revista SAÚDE e a área de Inteligência de Mercado do Grupo Abril realizaram a pesquisa Como os Brasileiros Cuidam dos Rins, que contou com o apoio das farmacêuticas AstraZeneca, Baxter e Bristol-Myers Squibb. Realizada pela internet, a sondagem teve a participação de 1 885 pessoas de todas as regiões — 331 delas com alguma doença renal.
De saída, chama a atenção que metade dos respondentes sem a condição afirma nunca ter procurado um médico para avaliar a situação dos rins. “Como o problema apresenta sintomas tardios e inespecíficos, quando a pessoa busca ajuda ele já avançou perigosamente, sem possibilidade de marcha a ré”, explica João Egidio Romão Júnior, chefe de nefrologia e transplantes da BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo.
O atraso no diagnóstico é, de fato, um dos achados mais preocupantes do estudo. Entre os participantes com insuficiência renal, 45% receberam o diagnóstico em estágios 4 ou 5. “Aí a capacidade dos rins já está em torno de 30% e 15%, respectivamente”, aponta Romão Júnior.
Para reverter esses desfechos, a saída é trabalhar pela conscientização sobre os fatores de risco para o colapso dos rins, caso de diabetes, hipertensão, obesidade e tabagismo. “Quem integra um desses grupos precisa conversar com o médico e fazer exames periódicos para dosagem de creatinina e de albumina, que sinaliza o mau funcionamento renal”, orienta o médico da BP.
A pesquisa indica, porém, que os testes para averiguar essas taxas não constam do check-up anual de um número considerável de brasileiros. E uma parcela significativa mostra não estar a par do impacto de pressão e glicemia elevadas, assim como do cigarro e da dieta desequilibrada, na saúde dos órgãos que filtram o sangue.
As lacunas de informação se estendem às opções de tratamento. Com exceção da hemodiálise — que exige que o paciente vá a uma clínica especializada —, as demais terapias para insuficiência renal, como a diálise peritoneal, não são muito conhecidas. Mesmo entre os pacientes, mais de 1/3 não ouviu falar ou não sabe exatamente do que se trata esse procedimento feito em casa, no qual um soro especial é injetado por um cateter no abdômen e, ao ser drenado, retira as substâncias tóxicas acumuladas.
Esse desconhecimento pode estar associado a outro achado do levantamento: 29% dos diagnosticados dizem não ter recebido informações dos profissionais de saúde sobre as alternativas terapêuticas, e a 38% foi apresentada apenas a hemodiálise. “Dois fatores explicam a falta de familiaridade com a diálise peritoneal.
Primeiro, muitos centros de formação de nefrologistas não estão capacitados para oferecer treinamento sobre o procedimento”, analisa Cabral. “E há ainda a questão do custo. O reembolso pago pelo Ministério da Saúde inviabiliza a expansão dessa terapia que poderia facilitar o tratamento, sobretudo num país de dimensões continentais como o nosso”, conclui o nefrologista.
A adesão às medidas de controle é outro desafio entre quem tem um problema renal: boa parcela diz não seguir todas as recomendações médicas. “Essa é uma questão corriqueira em doenças assintomáticas que impõem modificações no estilo de vida. A pessoa pensa: por que não comer aquilo de que gosto se não estou sentindo nada?”, avalia Cabral.
A circunstância ajuda a explicar o alto índice de hospitalizações, situação vivida pelo menos uma vez por 70% dos participantes com insuficiência renal. A dificuldade para fazer ajustes na rotina também contribui para a hiperpotassemia, a elevação nos níveis de potássio no sangue, quadro frequente em pacientes renais — na pesquisa, os episódios eram comuns em 40% dos casos. “Em pacientes com o coração fragilizado, o desajuste de potássio pode levar a uma parada cardíaca”, alerta Romão Júnior.
No contexto do câncer renal, não faltam relatos de quem só procurou assistência depois do surgimento de sintomas, quando é maior a probabilidade de o tumor já estar em estágio avançado. A boa notícia é que o diagnóstico vem acontecendo mais em consultas de rotina.
“Com a maior disponibilidade de exames de imagem, é frequente que, ao investigar queixas não relacionadas, o câncer seja descoberto na fase inicial”, conta o oncologista Diogo Bastos, do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Entre os respondentes, o encaminhamento ao especialista para tratamento se mostrou relativamente ágil: para 67%, isso se deu em até um mês depois da detecção. Resta, contudo, superar barreiras como a dificuldade de acesso na rede pública.
Diante do envelhecimento da população e da ascensão das condições propícias às doenças renais, fica evidente a necessidade de um esforço em conjunto de vários atores para conscientizar os brasileiros sobre a prevenção, o diagnóstico e o tratamento dos males que afetam os rins. Afinal, quando eles não estão aptos a trabalhar, o corpo todo sofre as consequências.