Em 1917, o escritor Monteiro Lobato publicou um artigo de jornal que ganhou fama e semeia polêmica até os dias de hoje: Paranoia ou Mistificação?. O texto faz uma crítica ácida à exposição da pintora Anita Malfatti e aos novos movimentos artísticos da época. O parecer de Lobato — “sincero”, em sua visão; “conservador”, diríamos agora — não estancou as inovações e metamorfoses culturais.
Pelo contrário! Menos de cinco anos depois, teríamos a centenária Semana de Arte Moderna de 1922 e o modernismo ditaria as regras da literatura e das artes visuais por décadas.
Guardadas as distâncias e diferenças de tema e contexto, podemos imaginar que um fenômeno parecido tenha acontecido com a cannabis medicinal. Antes rejeitada pelo mainstream, a planta e seus derivados romperam fronteiras legais, sociais e científicas e firmam o pé nos campos terapêuticos do século 21.
O estigma despertado pela “guerra às drogas”, vigente em boa parte do século passado, atrapalhou bastante os estudos com a cannabis e os canabinoides. Mas a resistência dos pesquisadores — hoje somada à de pacientes e familiares para os quais a planta é uma alternativa de tratamento — venceu.
Não completamente. Mas, sem dúvida, vivemos outros tempos, em que produtos à base de Cannabis sativa já podem ser adquiridos, sob prescrição médica, na farmácia ou importados.
A ciência demonstra que componentes da maconha podem ser úteis ao controle de epilepsias resistentes à terapia-padrão, sintomas de esclerose múltipla, náusea decorrente de quimioterapia e dores crônicas. Ou seja, a planta amplia, com segurança e eficácia, o arsenal terapêutico nessas e, possivelmente, em outras condições.
Porém, nos tempos líquidos que vivemos, verdades são distorcidas com alguma frequência e, diante de um mercado em ebulição, a cannabis não raro veste os trajes de panaceia — já tem gente vendendo o produto como a cura de um catálogo de doenças.
Como documenta a reportagem de capa de Chloé Pinheiro, esse comportamento é capaz de prejudicar a pesquisa e a prescrição amparada em evidências, assim como distorce o olhar da sociedade a respeito.
Então cabe a provocação: panaceia ou revolução? Talvez nem uma coisa nem outra. Há inúmeros experimentos controlados com cannabis em curso pelo mundo, e o Brasil é referência no assunto. Em paralelo, médicos e pacientes a testam, muitas vezes em situações desafiadoras (e desesperadoras), como opção de tratamento.
E assim se constrói o conhecimento em cima dessa planta-medicamento, que vai se enraizando de vez na medicina.
* O texto Paranoia ou Mistificação? pode ser lido na coletânea de artigos Ideias de Jeca Tatu (Editora Globo), de Monteiro Lobato