O Brasil completou um ano de vacinação contra a Covid-19 neste mês e ainda há dúvidas sobre a rapidez com que os imunizantes foram elaborados e aprovados. Tem muita gente inclusive usando esse fator para espalhar desinformações a respeito das vacinas, ao dizer que elas são “experimentais”.
Ocorre que a afirmação está incorreta. As vacinas disponíveis já estão aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), algumas liberadas de maneira emergencial, outras com o registro definitivo. “Uma fórmula é experimental quando é indicada para ser usada apenas dentro de estudos clínicos”, define a pediatra Flávia Bravo, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
Esses estudos são compostos de diversas etapas que obedecem a regras rígidas de agências reguladoras.
Pesquisadores iniciam seu trabalho na bancada do laboratório e só depois de um tempo podem recrutar voluntários. Quando chega a hora, são três fases de análises, sendo a última em dezenas de milhares de indivíduos, para atestar segurança e eficácia da fórmula.
“Os imunizantes contra a Covid-19 também seguiram todo esse ritual, e os resultados foram apresentados às agências regulatórias, que comprovaram esses dados antes de liberar a fabricação”, pontua Evaldo Stanislau, infectologista do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). A partir daí, já não dá mais para chamar as vacinas de experimentais.
No momento, estamos na fase 4, aquela em que os imunizados são acompanhados para saber se há efeitos ou reações diferentes das listadas durante os estudos clínicos. Isso acontece com todas as vacinas aprovadas para outras doenças. Ainda há estudos controlados sendo conduzidos para averiguar a duração da imunidade e a eficácia frente a novas variantes.
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Fora que os dados de vida real confirmam aquilo visto nos testes. Até a primeira semana de janeiro, quase 4 bilhões de pessoas foram imunizadas em todo o mundo contra a Covid-19, segundo dados do Our World in Data – número suficiente para comprovar a eficácia e segurança das vacinas disponíveis.
E, embora o Brasil esteja vivendo uma explosão de casos da variante Ômicron, a taxa de mortalidade e severidade não está subindo na mesma velocidade. Hoje, grande parte dos indivíduos internados com quadros graves são justamente aqueles que não se vacinaram ou não completaram o esquema de imunização.
Mas, então, por que algumas vacinas receberam uma aprovação chamada de “emergencial”?
Bem, no caso de uma crise urgente de saúde pública, como uma pandemia, o surgimento de um fármaco ganha relevância especial.
A liberação em caráter emergencial justifica certas medidas, como fornecer dados dos experimentos na medida em que eles vão saindo — em vez de mandar a papelada toda de uma só vez. A ideia é apenas adiantar alguns passos do processo regulatório. Isso tudo, claro, sem abrir mão principalmente da segurança.
E vale destacar que a vacina da Pfizer, uma das principais vítimas da campanha difamatória, já recebeu o registro definitivo da Anvisa.
“Essas vacinas ficaram prontas rápido demais”
Acontece que, pela primeira vez, uma capacidade tecnológica muito avançada casou com a urgência de combater uma doença mortal, de fácil transmissão e sem tratamento.
Em paralelo, todos os pesquisadores do mundo se empenharam em buscar soluções para a mesma questão. Ou seja, trata-se de um contexto inédito.
Lá atrás, quando ainda não se fazia ideia de que o Sars-CoV-2 iria surgir, muita coisa já acontecia nos bastidores da ciência – incluindo o estudo de vacinas para o Sars-Cov-1 e o MERS, outros coronavírus que ameaçaram causar pandemias no passado.
“Há pequenos grupos de pesquisadores trabalhando em todo mundo 24 horas por dia, e em várias frentes. Eles atuam no desenvolvimento de moléculas e tecnologias inovadoras. Quando uma nova ideia ganha força, passa a circular em seminários e publicações científicas até amadurecer o suficiente para ser levada ao mercado”, comenta Stanislau.
Nesses ambientes, há ainda o conceito de multiplataforma: uma mesma tecnologia pode servir para criar tratamentos, medicamentos e vacinas para diferentes doenças.
Mas o que isso tem a ver com os imunizantes contra o Sars-CoV-2?
Perceba: “A tecnologia de RNA mensageiro, por exemplo, serviu como solução para Covid-19, mas já vinha sendo utilizada no tratamento do câncer e de outras doenças infecciosas”, relata Stanislau, referindo-se ao tipo de vacina criada pela BioNTech e fabricada pela Pfizer.
Aliás, a BioNTech foi fundada por um casal de cientistas alemães no início dos anos 2000 justamente para encontrar soluções contra o câncer.
“Parece rápido, mas eles estudavam esse método de RNA mensageiro há décadas”, reforça o infectologista. A vacina da Moderna também é feita com essa tecnologia, considerada revolucionária entre os experts.
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A história é semelhante em relação à tecnologia de vetor viral, utilizada pela AstraZeneca, Janssen e pelo Instituto de Pesquisa Gamaleya (da vacina Sputnik V). É que esse sistema já era conhecido há alguns anos, e estava sendo testado em humanos contra o ebola desde 2015.
A Coronavac, por sua vez, foi elaborada a partir da inativação do vírus, um processo considerado clássico para a formulação de vacinas. A da gripe, que tomamos anualmente, parte desse princípio.
“Esses imunizantes foram resultado de um esforço nunca antes visto na história. O número de mortos impunha essa agilidade”, resume Flávia.
Em junho de 2020, já haviam 17 candidatas contra a Covid-19 em testes clínicos – aqueles conduzidos com pessoas. Outras 132 formulações estavam na fase de testes pré-clínicos (in vitro e em animais), segundo publicação da revista Pesquisa Fapesp.
Depois das primeiras aprovações, o número explodiu. De acordo com o site Covid-19 Vaccine Tracker, da Universidade McGill, 33 vacinas já foram aprovadas em 197 países, e outras 178 candidatas estão sendo testadas em mais de 500 ensaios clínicos mundo afora.
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Toda essa experiência com os imunizantes, vale dizer, renderá frutos. “As tecnologias utilizadas contra a Covid abriram portas para investigar vacinas e tratamentos para outras doenças que podem não ser tão urgentes, mas precisam ser combatidas”, pontua Flavia.
Por que, então, não houve rapidez com vacinas para outras doenças?
A primeira vantagem que os estudiosos têm em relação ao coronavírus é que se trata de um micro-organismo que não se transforma tanto. Há notícias de novas mutações, mas esse número é considerado baixo.
Além disso, a chave que o coronavírus utiliza para entrar e infectar nossas células, chamada de proteína Spike, foi descoberta rápido. Ou seja, ter o alvo identificado facilitou o desenvolvimento das fórmulas.
Entre os grupos anti-vacina, vira e mexe surge uma contestação ligada ao vírus HIV, causador da aids: “Por que, então, depois desse tempo todo, ainda não há vacina contra ele?”.
Mas é preciso frisar que a comparação é completamente descabida. Os vírus não usam necessariamente das mesmas artimanhas para bagunçar nosso organismo.
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“É difícil estabelecer uma tecnologia boa contra o vírus da aids porque ele se esconde justamente dentro dos nossos linfócitos, que são as células de defesa”, justifica Flavia.
Em resumo, trata-se de um micro-organismo que age de maneira muito mais complexa do que o coronavírus, apresentando diversos desafios aos cientistas.
Mas ela conta que vários estudos estão em andamento para chegar a uma vacina contra o HIV, principalmente com base nessas tecnologias apresentadas durante a atual pandemia.
Há, por outro lado, vacinas que acabam perdendo o sentido, porque o desafio de desenvolvê-las é grande e, mais importante do que isso, surgem tratamentos e formas de prevenção eficazes – esse é o caso da hepatite C. “É uma vacina desejável, claro, mas não com a mesma urgência da Covid-19”, informa Stanislau.
Falando em urgência, frente a uma ameaça global é muito mais fácil convencer farmacêuticas, governos e empresários a investirem pesado no desenvolvimento de vacinas. O dinheiro é fundamental para contratar mais cientistas, construir infraestrutura, comprar insumos… E tudo isso contribui para a produção andar mais depressa.
Por fim, na hora de fazer os estudos havia muita gente contaminada ao mesmo tempo, acelerando a disseminação do Sars-CoV-2. “Assim, ficou fácil recrutar pessoas que foram expostas ao vírus ou que tinham chances de serem infectadas para comparar seus efeitos”, finaliza o infectologista do HC.