Um time de cientistas de universidades internacionais elaborou uma metodologia para mensurar a resposta de diferentes governos ao novo coronavírus (Sars-CoV-2). A proposta, publicada na prestigiada revista científica Nature, ganhou o nome de Covid-Score (ou Placar da Covid, em tradução livre) e é relativamente simples. Basta dar uma nota em diferentes critérios estabelecidos. A partir desses pontos, pedimos para seis especialistas brasileiros avaliarem a reação do nosso país à pandemia — e as notas, infelizmente, foram bem baixas.
Para os criadores desse método, houve um fracasso coletivo em conter o avanço global do novo coronavírus, o que é “desapontador, mas previsível”. Entre os problemas citados, eles destacam a demora em declarar a pandemia, a sobrecarga generalizada dos sistemas de saúde e a falta de equipamentos de proteção individual e de investimentos na linha de frente do atendimento.
Como funciona o Placar da Covid
O método completo possui 19 afirmações, nas quais se deve atribuir uma nota de 1 a 5, sendo 1 o equivalente a “discordo totalmente” e 5, “concordo totalmente”. Mas seus criadores fizeram uma versão simplificada, voltada justamente para o público em geral, que contém dez pontos. Nós pedimos para seis especialistas se concentrarem nessa avaliação resumida.
Também pedimos para eles escreverem pequenos comentários sobre os pontos avaliados. E calculamos a média em cada quesito, com direito a uma média final.
Quem colaborou
- Adriano Massuda, médico e gestor, professor da Fundação Getúlio Vargas e pesquisador-visitante da Harvard T.H. Chan School of Public Health.
- Daniel A. Dourado, médico e advogado sanitarista, pesquisador associado do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (USP).
- Fernando Spilki, virologista, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia (SBV).
- Gonzalo Vecina Neto, médico e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, presidente do Conselho do Instituto Horas da Vida.
- Paulo Lotufo, epidemiologista, professor e diretor do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica da Faculdade de Medicina da USP (ele não pode fazer comentários).
- Natalia Pasternak, microbiologista e presidente do Instituto Questão de Ciência.
Afirmação 1) As autoridades se comunicaram de maneira clara e consistente sobre a Covid-19 e tomaram decisões baseadas na saúde pública.
Notas e comentários:
Massuda: 2/5
“Num primeiro momento sim, mas depois houve confusão entre o que era papel do Ministério da Saúde o que era atribuição da Presidência, e isso foi piorando.”
Dourado: 1/5
“As autoridades brasileiras adotaram postura errática desde o início da epidemia no país. Não houve em nenhum momento um discurso coeso e coerente com as medidas sanitárias, uma vez que, mesmo no período em que o Ministério da Saúde atuou nesse sentido, as comunicações da Presidência da República e dos outros ministérios foram em direção contrária ao que era indicado pelas evidências em saúde pública.”
Spilki: 3/5
“Foram altos e baixos. A comunicação verbal sobre a situação chegou a ser diária e esse diálogo se perdeu. Depois, tivemos momentos em que os próprios portais de acompanhamento online dos números sofreram com diminuição da transparência. Hoje, os sites apresentam dados com mais clareza, mas a comunicação nas redes sociais continua demasiadamente otimista, omitindo, por exemplo, o número de óbitos.”
Vecina: 2/5
“Não houve boa comunicação do governo federal e as decisões foram erráticas. O exemplo mais gritante foi o da cloroquina, indicada equivocadamente pelo Ministério da Saúde.”
Lotufo: 2/5
Pasternak: 1/5
“O governo federal não se comunicou e os estados não o fizeram de forma clara”
Média: 1,8/5
2) As comunicações do governo foram direcionadas para toda a população em sua diversidade (língua, cultura, educação e nível socioeconômico)
Massuda: 2/5
“Houve comunicação para grupos específicos, mas não o suficiente para garantir que chegasse a todo mundo. Só não coloco 1 porque houve alguma comunicação, mas isso também foi piorando com o tempo.”
Dourado: 1/5
“Vale mencionar que não houve uma articulação entre os estados, que deveria ter sido conduzida pela esfera federal, de modo que as comunicações foram feitas de forma independente pelas secretarias estaduais.”
Spilki: 4/5
“A comunicação do Ministério da Saúde foi organizada e clara na maior parte do tempo.”
Vecina: 1/5
“Neste quesito, o Ministério da Saúde piorou com o tempo. O exemplo é a confusão criada em torno dos testes moleculares e os testes sorológicos rápidos. Aliás, a comunicação foi tão ruim que até pessoas do setor de saúde ainda fazem confusão sobre o uso desses exames. Também as questões relativas ao isolamento social não foram adequadamente transmitidas.”
Lotufo: 3/5
Pasternak: 1/5
“Não houve comunicação”
Média: 1,8/5
3) Toda a população consegue fazer um teste grátis e confiável para Covid-19 e receber os resultados rapidamente
Massuda: 2/5
“Quem consegue fazer o teste é quem se encaixa nos casos graves, de acordo com a classificação do Ministério da Saúde. Agora começaremos a ter em maior escala para pacientes suspeitos.”
Dourado: 1/5
“Outro elemento bastante falho no enfrentamento da epidemia no Brasil. No geral, têm sido feitos poucos testes e há muita heterogeneidade entre os estados. Em muitos, a maior parte dos exames é do tipo sorológico, que não é útil para diagnóstico da doença e sim para detecção de anticorpos (indica doença passada). Os testes moleculares do tipo RT-PCR (que captam a presença do vírus) são insuficientes. Além disso, a liberação e utilização de diversos “testes rápidos” sorológicos, que são pouco confiáveis, confunde a interpretação dos resultados.”
Spilki: 2/5
“Não há testes disponíveis para todos nem na rede privada. O Brasil infelizmente testa muito pouco. O esforço de governos locais e universidades melhorou a situação, mas não chegaremos provavelmente a números ideais.”
Vecina: 1/5
“Não existe oferta dos testes de maneira adequada. Até poucos dias atrás, somente tínhamos exames nos hospitais para pacientes internados. O indicador deste erro são os casos de óbitos com diagnóstico provisório de SRAG. Agora a notícia é que temos mais testes, mas esses continuam sendo usados somente para sintomáticos. Praticamente não estamos testando os contatantes.”
Lotufo: 1/5
Pasternak: 1/5
“Os testes são insuficientes até para profissionais de saúde e pacientes sintomáticos”
Média: 1,3/5
4) O rastreamento de contatos está sendo realizado para casos confirmados
Massuda: 1/5
“Não está sendo realizado em nível federal, só em alguns municípios, por iniciativa própria.”
Dourado: 1/5
“O Ministério da Saúde não incentivou o rastreamento de contatos e nem adotou nenhuma ferramenta para essa medida, diferentemente de outros países que desenvolveram aplicativos específicos para isso. A medida ficou a cargo de estados e municípios, sem coordenação federal.”
Spilki: 2/5
“Muito raramente, e isso atrapalha ações efetivas de contenção. A política geral ainda reside na testagem de casos moderados e graves, até em virtude da falta de testes.”
Vecina: 1/5
“Não estão sendo testados os contatantes e as poucas unidades preparadas para receber contatantes testados positivamente para isolamento estão vazias.”
Lotufo: 2/5
Pasternak: 1/5
“Simplesmente não há rastreamento.”
Média: 1,3/5
5) O Ministério da Saúde, secretarias estaduais e municipais mantêm dados epidemiológicos da Covid-19 robustos, atualizados e comunicados diariamente
Massuda: 4/5
“Poderia ser melhor, mas estão comunicando e ao menos temos um sistema ativo de notificação e informação.”
Dourado: 3/5
“Nem todos os estados apresentam dados consistentes, mas esse ponto tem sido contemplado de maneira razoavelmente adequada no Brasil. O Ministério da Saúde basicamente consolida os dados das secretarias estaduais e os apresenta diariamente, embora tenha sido necessária medida judicial para que não os ocultasse.”
Spilki: 3
“A situação varia no país, mas a maior fraqueza usualmente se refere a atrasos na compilação de dados.”
Vecina: 2
“Estados e municípios têm com deficiência cumprido suas obrigações de relatar casos. Porém não tem tido acesso a testes, pois o governo federal não os distribui adequadamente. Daí, temos um grande número de óbitos registrados com SRAG, como diagnóstico provisório que não será revertido pela falta de testes de RT-PCR.”
Lotufo: 2/5
Pasternak: 1/5
“Só fez isso por determinação do STF e misturando testes diagnósticos que comprometem os números finais.”
Média: 2,5/5
6) O governo pode solicitar a empresas privadas a produção de equipamentos críticos rapidamente, se necessário.
Massuda: 1/5
“Deveria, mas não temos informações sobre isso.”
Dourado: 1/5
“O atual governo federal não priorizou o fortalecimento do complexo econômico e industrial da saúde no país. No último ano, o Ministério da Saúde suspendeu parcerias de desenvolvimento produtivo (parcerias entre órgãos públicos e privados com a finalidade de internalizar a produção e o desenvolvimento de tecnologias por produtores nacionais). E, durante a pandemia, ainda desperdiçou recursos ao direcioná-los para a fabricação de medicamentos sem comprovação de segurança e eficácia para a Covid-19 (cloroquina e hidroxicloroquina).”
Spilki: 3/5
“No que se refere a respiradores e outros materiais para instalações hospitalares, o Brasil conseguiu viabilizar aquisições de fornecedores locais. O mesmo não ocorre para estruturas de laboratórios, onde sofremos dependência de fornecedores externos.”
Vecina: 2/5
“Os outros entes federados estão fazendo seu papel, mas são limitados no seu alcance. O Ministério da Saúde tem recursos e é responsável por 50% do financiamento do SUS, tem capacidade de realizar importações mais velozes e pode buscar as organizações internacionais. Mas nada disso foi mobilizado. Tardiamente, o governo mobilizou alguns produtores de respiradores. Mas não o conseguiu fazer em relação aos equipamentos de proteção individual e, neste momento, está começando a falhar no caso dos anestésicos.”
Lotufo: 3/5
Pasternak: 1/5
“Não, porque o Brasil não produz insumos de base”
Média: 1,8/5
7) Todos têm acesso garantido e regular aos serviços de saúde.
Massuda: 4/5
“Todos têm acesso garantido na lei, mas na prática há alguma dificuldade.”
Dourado: 3/5
“Esse ponto é positivo graças à existência do SUS, um sistema público e universal de saúde. Entretanto, há enorme heterogeneidade entre regiões do país, que conta com ilhas de excelência na assistência médico-hospitalar (nos grandes centros urbanos, especialmente do Sudeste do país), mas tem áreas sem capacidade instalada e que não puderam garantir acesso devido à saturação da rede assistencial (como, por exemplo, no estado do Amazonas).”
Spilki: 4/5
“O SUS é o grande trunfo no combate à pandemia. Mas, apesar da universalização, sua capacidade de atendimento é limitada.”
Vecina: 3/5
“A resposta dos estados e dos grandes municípios foi boa. Saímos, em março, de 14 869 leitos de UTI para 18 564 em junho! Foi um grande esforço. Manaus e Belém foram as capitais que tiveram mais problemas. Mas até agora, no restante do país, o SUS tem dado uma resposta adequada. A mortalidade nas UTIs públicas foi pior do que a dos grandes hospitais privados, por isso não dou uma nota maior.”
Lotufo: 5/5
Pasternak: 4/5
“Há o acesso, mas com filas de espera longas e com SUS sobrecarregado”
Média: 3,8/5
8) Medidas apropriadas foram tomadas para proteger membros de comunidades vulneráveis, como idosos e pessoas em pior situação socioeconômica.
Massuda: 2/5
“Houve iniciativas em alguns locais, mas de maneira muito frágil. Em tudo que dependeu do governo federal, a resposta foi trágica. Grupos socioeconômicos mais vulneráveis, pessoas que moram em favelas, trabalhadores que dependem do transporte público, população encarcerada, indígenas e idosos não foram assistidos.”
Dourado: 3/5
“O auxílio emergencial que deve ser pago a cerca de 60 milhões de brasileiros é uma medida necessária para a proteção social. Vale ressaltar que foi adotada graças ao Legislativo, porque o Executivo federal procurou minimizar o impacto da pandemia e atrasou pagamento de parcelas do auxílio. Mais recentemente, o governo federal assumiu a necessidade de crédito extraordinário mais robusto (mas ainda insuficiente), via medidas provisórias.”
Spilki: 3/5
“Medidas de manutenção da renda foram propostas, mas há dificuldades na implementação rápida delas.”
Vecina: 2/5
“O cuidado desencadeado foi realizado por estados, municípios e pela solidariedade de iniciativas privadas. Essas ações foram limitadas às Instituições de Longa Permanência de Idosos. Na população, de novo, apenas o setor privado ofereceu algumas facilidades para idosos.”
Lotufo: 3/5
Pasternak: 1/5
“Não houve auxilio e, quando houve, a burocracia foi impeditiva.”
Média: 2,3/5
9) O governo está fazendo algo para atenuar os impactos que as medidas relacionadas à contenção do vírus podem trazer para a situação socioeconômica e para outros aspectos da saúde da população.
Massuda: 2/5
“O auxílio emergencial implementado pelo governo e sugerido pelo congresso foi muito importante, mas se limitou a isso. Deveríamos ter visto um conjunto de outras medidas.”
Dourado: 2/5
“Apesar de ter adotado medidas para atenuar os impactos socioeconômicos e na saúde da população (como as mencionadas liberações de créditos extraordinários, concessão de auxílios a empresas, renegociação de dívidas e liberação de recursos para trabalhadores), o governo brasileiro insiste em medidas de austeridade fiscal, tentando não aumentar os gastos públicos e se recusando a debater a revisão do regime fiscal do teto de gastos. Neste momento de crise, é uma visão que limita a capacidade de reação do Estado.”
Spilki: 2/5
“Os esforços estão aquém das necessidades dos indivíduos e da manutenção dos pequenos e médios negócios.”
Vecina: 2/5
“O governo federal titubeou muito em oferecer ajuda financeira às populações das áreas mais deprimidas em alguns municípios. Acho que o socorro foi tímido. O Brasil foi o país mais desigualmente atingido pela pandemia e o resultado já está aparecendo: estão morrendo mais negros e pobres!”
Lotufo: 1/5
Pasternak: 1/5
“Não existem ações mitigadoras do governo.”
Média: 1,7/5
10) O governo está colaborando com outros países, a OMS e órgãos internacionais na resposta à pandemia.
Massuda: 2/5
“Lamentavelmente, a relação do Brasil com a Organização Mundial de Saúde está muito ruim. Temos a vacina, mas ela não envolve a OMS. Talvez o Ministério da Saúde tenha uma relação melhor, mas a do governo em geral é ruim.”
Dourado: 1/5
“A colaboração do Brasil com outros países e com órgãos internacionais tem sido muito ruim. O governo federal tem insistentemente questionado as orientações da OMS, acusando a entidade de viés ideológico e até mesmo ameaçando retirar o país da organização. O Brasil foi um dos poucos países a não apoiar, na Assembleia Geral da ONU, o acordo de cooperação internacional para garantir o acesso global a medicamentos, vacinas e equipamentos médicos durante a pandemia.”
Spilki: 4/5
“Há articulação e diferentes órgãos participam ativamente de colegiados internacionais.”
Vecina: 1/5
“Outro desastre. O governo federal habita outro mundo. Não está utilizando essas instituições. A ACNUR (Agência da ONU para Refugiados) está agindo sozinha em Roraima e o Médicos Sem Fronteiras se mobiliza nos rincões do Amazonas para salvar os indígenas. Temos usado pouco o complexo Organização Mundial de Saúde/Organização Pan-Americana da Saúde (OMS/OPAS).”
Lotufo: 1/5
Pasternak: 1/5
“O Brasil não participa dos acordos e diretrizes da OMS.”
Média: 1,7/5
Nota geral do Brasil
Massuda: 22/50
Dourado: 17/50
Spilki: 30/50
Vecina: 17/50
Lotufo: 23/50
Pasternak: 13/50
Média: 20/50