A situação chega a ser corriqueira: a pessoa com diabetes fere o pé caminhando por aí, só que não sente nada na hora. Mais tarde, em casa, tira o tênis e nota o machucado. Daí faz um curativo e pensa que tudo está resolvido. Sem causar alarde, porém, o ferimento evolui ao longo de semanas — o diabetes já reduziu a sensibilidade nas extremidades do corpo — e dá lugar a uma infecção, que, por fim, se alastra. Quando o indivíduo procura o hospital, a lesão se agravou a ponto de a única saída ser a amputação de uma parte do membro. Pense agora que essa história com final infeliz poderia começar também com uma bolha, uma frieira ou uma topada numa cadeira. Esse é o chamado pé diabético.
O quadro pintado acima e que progride de forma silenciosa — em algumas situações, só um formigamento acusa algo de errado — é a causa número 1 de amputações não traumáticas no país. Segundo o Grupo de Trabalho Internacional para o Pé Diabético, um caso ocorre a cada 20 segundos no mundo. “Até alguns anos atrás, o diabético com lesão no pé era levado direto para a amputação”, relata a endocrinologista Hermelinda Pedrosa, representante do grupo no Brasil. “Felizmente isso mudou, mas ainda é uma realidade em várias regiões por aqui”, completa.
De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde, as feridas nos membros inferiores estão presentes em 5% dos usuários do SUS com diagnóstico de diabetes há menos de dez anos e em 5,8% dos indivíduos com mais de uma década de doença — homens, tabagistas e portadores de insuficiência renal e cardíaca são particularmente vulneráveis. Não é um número pequeno se considerarmos que existem pelo menos 16 milhões de pessoas com diabetes no país. Tanto é que o próprio Ministério da Saúde conta com o Manual do Pé Diabético, um guia com os cuidados básicos para evitar e remediar a complicação, que hoje representa 20% das internações de sujeitos com diabetes no Brasil.
Mas por que, nesses casos, o corpo não cura uma ferida tão pequena? E por que é tão comum o machucado passar batido? O motivo está numa característica típica do diabetes descontrolado, a sobrecarga de açúcar no sangue, em boa parte dos episódios acompanhada de muita gordura trafegando pelos vasos.
Isso impede uma boa circulação, o que leva um monte de células a morrer de fome. Nesse cenário, o sistema imune fica capenga, a regeneração dos tecidos anda a passos lentos e os nervos periféricos sofrem. “A glicose elevada destrói a camada que protege o nervo. Assim ele fica mais suscetível aos danos causados pelas mudanças de pH do sangue ou de temperatura”, explica o médico Carlos Peixoto, presidente da Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular — Rio de Janeiro.
Baixa imunidade: a má circulação provocada pelo excesso de açúcar no sangue diminui a escolta de células de defesa prontas para agir quando preciso.
Falta de sensibilidade: a alta da glicose leva a danos nos nervos periféricos, que captam e repassam estímulos como a dor. Daí que o sujeito mal nota encrencas no pé.
Déficit na cicatrização: o diabetes descompensado dificulta a regeneração de áreas lesadas, o que deixa a porta aberta para micróbios atacarem.
Sim, é uma complicação e tanto, mas a boa notícia é que o problema pode ser evitado. E a prevenção começa dentro de casa. A primeira regra é controlar as taxas de açúcar no sangue, incorporando à rotina uma dieta equilibrada, exercícios e, se for o caso, remédios para regular os níveis de glicose, colesterol e triglicérides.
“Quem convive muito tempo com a glicose elevada corre maior risco de ter infarto, AVC, insuficiência renal e também o pé diabético”, lembra o cirurgião vascular João Paulo Tardivo, responsável pelo Centro de Tratamento do Pé Diabético da Faculdade de Medicina do ABC, na Grande São Paulo. A segurança dos membros inferiores pede ainda cuidados extras, como cortar as unhas direito, enxugar bem os dedos, evitar andar descalço.
O acompanhamento médico também é fundamental. Não é incomum diabéticos procurarem o consultório ou o hospital quando já têm uma infecção no pé relativamente avançada. O ideal, porém, é realizar exames regulares para checar o risco de uma encrenca dessas se manifestar.
O manual do Ministério da Saúde orienta o indivíduo a fazer consultas em um intervalo de três a seis meses se houver indício de danos nos nervos periféricos — isso independentemente de deformidades no pé. Em caso de má circulação na região, às vezes dedurada por sensação de formigamento, o intervalo de visitas ao médico cai para entre dois e três meses. Havendo histórico de úlceras ou mesmo amputação, o checkup deve ser mensal ou bimestral.
Se você tem diabetes e, por acaso, sofreu algum ferimento, ou já está com algum machucado sem sinal de melhoras, o conselho é procurar um profissional quanto antes. “Existem recomendações internacionais de que todo paciente com pé diabético deve receber um atendimento em 24 horas”, conta Hermelinda Pedrosa, que também dirige o Departamento de Diabetes da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia.
Na linha de tratamento e redução de danos, entram desde procedimentos para liberar o fluxo na circulação periférica até antibióticos para debelar infecções oportunistas. Medicações como anticoagulantes podem ser receitadas ainda para melhorar a irrigação sanguínea nos membros inferiores.
Tecnologia para preservar
Nos episódios em que a ferida já é muito extensa, os especialistas recorrem a métodos que aceleram a cicatrização. Um deles é a oxigenoterapia hiperbárica, que tem aval do Conselho Federal de Medicina. Nela, o paciente fica uma hora e meia dentro de uma máquina que lembra um submarino, onde a pressão atmosférica é muito menor do que a do nível do mar, e a concentração de oxigênio no ar chega a 100%.
Esse ambiente estimula a produção de colágeno, proteína vital na regeneração dos tecidos. “A técnica reduz o tempo de tratamento e o risco de amputação”, destaca o infectologista Ivan Marinho, chefe do Centro de Tratamento de Feridas do Hospital São Camilo, na capital paulista.
Outro recurso é a fototerapia dinâmica, originalmente voltada para o combate ao câncer e que começou a ser aplicada no pé diabético por Tardivo em 1987. O método consiste em introduzir um cateter pela ferida até chegar à porção comprometida. Por meio dele são injetadas substâncias que, ao reagirem com a luz, destroem as bactérias alojadas.
As sessões duram dez minutos e são feitas até que a infecção seja eliminada. Embora ainda aguarde regulamentação, a fototerapia se mostrou eficaz em prevenir amputações conforme dois estudos conduzidos por Tardivo no ABC paulista. Antes de as coisas complicarem, porém, convém manter os pés no chão e se cuidar direito, inclusive quando estiver andando por aí.
Autoexame: avalie diariamente os pés em busca de micose, machucados ou sinais estranhos como vermelhidão. Estimule os dedos para ver se eles estão sensíveis ao toque.
Corte de unhas: mantenha-as aparadas, de preferência em linha reta, para evitar que você arranhe os pés e crie feridas durante o sono ou a prática de exercícios físicos.
Pós-banho: seque bem os pés para afastar frieiras. Vale a pena hidratá-los a fim de limitar o ressecamento,
que os deixa suscetíveis a lesões — só não passe creme entre os dedos.
Calçados: evite sapatos ou tênis apertados e desconfortáveis, para não sofrer com bolhas e calos, ou abertos, para escapar de arranhões. É melhor não andar descalço por aí.
Meias: é preferível optar pelos modelos de algodão. As de material sintético, como náilon, fazem os pés suar mais e a umidade dá margem para a micose aparecer e se perpetuar.