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Batalha interna: o que se sabe sobre doenças autoimunes e como tratá-las

Megaestudo aponta que uma em cada dez pessoas vive com doenças autoimunes. Saiba o que está por trás da autoimunidade e conheça os avanços da ciência

Por Texto: Larissa Beani | Design: Siamo Studio
26 out 2023, 15h21
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Entenda o que é a autoimunidade e conheça seus fatores de risco e formas de tratamento (CIPhotos/Getty Images)
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Assim que uma partícula estranha penetra o corpo humano, a equipe de células de segurança dispara um alerta. All’arme! All’arme! “Às armas!”, elas bradam, acionando um arsenal gigantesco de outras unidades imunológicas à disposição.

Algumas são formadas desde que estávamos na barriga da nossa mãe. É o chamado sistema imunológico inato, nossa primeira linha de defesa.

“Resumidamente, ele é responsável por identificar uma possível infecção, avisar o exército de que o corpo está sob alguma forma de ameaça e combatê-la com alguns artifícios”, explica a imunologista Carolina Sanchez Aranda, da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai).

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Entre os principais membros dessa tropa de prontidão estão diferentes tipos de glóbulos brancos, também chamados de leucócitos — caso dos monócitos, os neutrófilos e as células natural killer.

Além de contarmos com essa potente divisão, também vamos adquirindo novos recursos para o batalhão imunológico ao longo do tempo. Após o nascimento, entramos em contato com todo tipo de invasores — e, felizmente, também recebemos vacinas.

Isso tudo faz com que entre em marcha uma nova forma de imunidade, a adaptativa. Nela, outros gêneros de glóbulos brancos são protagonistas.

Um deles são os linfócitos T, que auxiliam outras células de defesa e produzem citocinas para eliminar o perigo, gerando o que os pesquisadores batizaram de resposta imune celular.

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Outros são os linfócitos B, que produzem os anticorpos, uma arma precisa na forma de proteínas. Eles são experts em combater ou neutralizar substâncias estranhas específicas, os antígenos, que costumam ser pedacinhos de micro-organismos.

Apesar das muitas particularidades de cada uma dessas células, todas são treinadas para ao menos uma tarefa em comum: saber distinguir entre o que é normal e saudável no nosso corpo e o que não é.

Por isso, os principais alvos desse exército são vírus, bactérias, fungos, vermes, células cancerosas e, inconvenientemente, órgãos transplantados. Mas nem sempre funciona assim.

A atividade do sistema imunológico pode sair de controle em certas ocasiões. E desatar uma rebelião.

Por motivos que médicos e cientistas ainda não conseguem compreender totalmente, nosso sistema de segurança pode começar a atacar estruturas do próprio corpo.

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“É a chamada autoimunidade. Por um desequilíbrio, o sistema imunológico passa a agredir células e tecidos da própria pessoa”, define a reumatologista Maria Carolina de Oliveira Rodrigues, professora da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP).

Surgem, assim, as doenças autoimunes. É como se o sistema de defesa entrasse numa guerra civil, revoltando-se contra partes específicas do corpo ou o organismo todo. E essa reação não é algo raro.

Acredita-se que todo mundo possa ter um certo grau de autoimunidade, algum nível de falha na mira do sistema imunológico que pode ser tolerado. O problema surge quando a agressividade se excede e a pessoa desenvolve uma das mais de 80 doenças autoimunes conhecidas.

Estatísticas autoimunes

Diabetes tipo 1, artrite reumatoide, esclerose múltipla e lúpus são só algumas das condições provocadas pelo descontrole do sistema imunológico.

Podendo se manifestar de forma ampla, a autoimunidade é mais prevalente do que muita gente imagina. Uma a cada dez pessoas pode ser afetada por ao menos uma doença autoimune, segundo um estudo publicado recentemente no respeitado periódico The Lancet.

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Nele, uma equipe internacional avaliou os registros médicos de 22 milhões de habitantes do Reino Unido, realizados entre 2000 e 2019. Assim, calcularam quão presentes são 19 doenças autoimunes comuns na região. Como resultado, observou-se um aumento de 22% no número de diagnósticos no período.

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As detecções que tiveram maior crescimento foram as de doença celíaca (reação autoimune de intolerância ao glúten); síndrome de Sjögren (quadro que causa olhos e boca seca e pode aparecer junto ao lúpus ou à artrite reumatoide); e doença de Graves (tipo de hipertireoidismo).

Já casos de anemia perniciosa (deficiência de glóbulos vermelhos associada à falta de vitamina B12) e de tireoidite de Hashimoto (inflamação que provoca hipotireoidismo) diminuíram significativamente.

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Confira quais são as principais doenças autoimunes (ikonacolor/Getty Images)

Fatores de risco

As razões para o aumento generalizado de condições autoimunes ainda são um mistério, mas especialistas acreditam que hábitos modernos estejam prejudicando nossa saúde e inflando essa estatística.

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Dormir pouco é um deles. Em 2022, médicos da Universidade Harvard e outras instituições americanas assinaram uma pesquisa que apontou que a privação de sono contínua pode aumentar marcadores de inflamação.

Segundo a investigação, noites bem-dormidas ajudam a fortalecer o sistema imunológico inato e são essenciais à formação e ao funcionamento dos monócitos.

Mesmo que os fatores de risco variem de doença para doença, outro gatilho que pode estar associado ao surgimento ou piora de quadros autoimunes é o estresse exacerbadoO estresse é uma reação natural que ocorre quando somos expostos a situações de pressão e perigo.

“Doenças autoimunes, porém, não são emocionais. São condições inflamatórias que podem ser influenciadas por condições mentais e físicas do paciente”, alerta a dermatologista Fabiane Andrade Mulinari Brenner, membro da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) e estudiosa de alopecias e manifestações cutâneas de doenças sistêmicas.

Acontecimentos estressores podem ter tanto origem psicológica (como traumas na infância e momentos frustrantes e difíceis na vida adulta) quanto físicos (por causa de uma forte infecção, por exemplo).

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Muitos vírus, aliás, estão associados ao despertar de doenças autoimunes. A família dos herpesvírus humanos pode ser especialmente problemática. Investigações já documentaram que eles podem ter um papel ativo no início do processo autoimune e no agravamento das doenças.

Um exemplo é o vírus Epstein-Barr, também conhecido como herpesvírus humano 4 e responsável pela mononucleose. Segundo estudo publicado na revista Science, ele aumenta o risco de desenvolver esclerose múltipla em 32 vezes.

+ Leia também: Epstein-Barr: quem é esse vírus e o que ele pode causar?

Vale pontuar que esses vírus são extremamente populares e que até 90% da população mundial pode ter tido contato com eles. Porém, isso não quer dizer que todos desenvolverão autoimunidade.

“A precocidade e a intensidade da infecção viral contam para a desorganização do sistema imunológico, mas sozinhas não são capazes de causar doenças autoimunes, que são multifatoriais”, esclarece Carolina, da Asbai.

Convém entender também que nem todo micro-organismo é maléfico. Pelo contrário: milhões deles habitam o nosso corpo e nos beneficiam. Bactérias que compõem a microbiota intestinal, por exemplo, são importantes para a manutenção do equilíbrio fisiológico.

“Elas nos ajudam a absorver nutrientes e a compor uma barreira de proteção contra invasores”, explica Jane Oba, gastroenterologista pediátrica do Núcleo de Doenças Inflamatórias Intestinais (DII) do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.

Outras tantas espécies residem na pele e estão presentes em mucosas como a boca e a genitália. O excesso de uso de produtos de higiene ou de antibióticos pode matar despropositadamente essas parceiras.

Fora isso, o histórico familiar é um fator relevante para uma maior predisposição genética ao desenvolvimento de doenças autoimunes. O mesmo vale para o gênero da pessoa.

No estudo britânico, 64% dos diagnosticados eram mulheres e somente 36% eram homens.

“A ciência ainda não sabe o porquê dessa discrepância, mas a influência de certos hormônios femininos e fatores ambientais que afetam mais as mulheres podem estar contribuindo”, diz a endocrinologista Gláucia Maria Ferreira da Silva Mazeto, professora da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (FMB/Unesp).

As mulheres são, veja só, as que mais sofrem com cargas elevadas de estresse e falta de sono. “Os fatores genéticos e ambientais andam de mãos dadas quando o assunto é autoimunidade”, resume a reumatologista Maria Rodrigues.

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Quebrando tabus

Apesar de ser algo relativamente comum, ser diagnosticado com doenças autoimunes ainda gera estigma e tabus. Para mudar isso, várias celebridades que convivem com condições crônicas do tipo já se posicionaram em prol do acesso ao diagnóstico e tratamento.

São exemplos a cantora Selena Gomez, que chegou a precisar de um transplante de rim como parte do tratamento do lúpus eritematoso sistêmico; o também cantor Nick Jonas, diagnosticado com diabetes tipo 1 aos 13 anos; a socialite Kim Kardashian, que tem psoríase; e o ator Ashton Kutcher, que convive com vasculite, uma inflamação nos vasos sanguíneos.

No Brasil, onde ainda não foram feitos levantamentos como o do Reino Unido, o apoio de figuras públicas para abordar o assunto é muito importante.

As atrizes Cláudia Rodrigues e Guta Stresser, diagnosticadas com esclerose múltipla, passaram a ser porta-vozes do tratamento da doença, que atinge 40 mil brasileiros. Já a empresária Natália Deodato deu visibilidade ao vitiligo enquanto participou do reality show Big Brother Brasil em 2022.

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Diagnóstico

Promover informações confiáveis sobre o tema é uma forma de ajudar inclusive na detecção mais precoce desses problemas de saúde.

“Geralmente as doenças autoimunes são as últimas a serem consideradas como diagnóstico, porque estamos acostumados a procurar causas invasoras, como infecções”, avalia Letícia D’Argenio Garcia, doutora em ciências médicas e especialista da Euroimmun Brasil, empresa de soluções diagnósticas. “Seria uma grande virada de chave se a autoimunidade fosse vista como uma causa conjunta a outras.”

+ Leia também: A busca por soluções capazes de tornar diagnósticos mais ágeis e precisos

A depender do contexto, para que a identificação seja realizada, são necessários exames de sangue e de imagem, além da checagem de marcadores genéticos e celulares.

Com o número crescente de pessoas que desenvolvem esses distúrbios imunológicos, a inteligência artificial tem sido integrada aos métodos laboratoriais para agilizar o flagra e o início dos tratamentos.

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Conheça os principais tratamentos para doenças autoimunes (CIPhotos/Getty Images)

Tratamentos

Fato é que as doenças autoimunes têm sido descritas desde a Antiguidade, mas o alívio para elas só começou a se tornar realidade em meados do século 20 — e até hoje não há uma solução definitiva ou cura.

+ Leia também: Reumatologia: da cortisona à medicina de precisão, 70 anos de evolução

Os expoentes desse campo de pesquisa foram o fisiologista Philip Showalter Henche e o bioquímico Edward Calvin Kendall.

Ambos trabalhavam na Clínica Mayo, um dos principais centros de saúde dos EUA, e foram responsáveis por descobrir a cortisona, um hormônio com atuação anti-inflamatória e imunossupressora que pôde ser aplicado como tratamento da artrite reumatoide — e depois de outras enfermidades.

Por essa descoberta, a dupla ganhou o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1950. Desde então, outras classes de remédios foram desenvolvidas e direcionadas contra a autoimunidade. Hoje, pílulas, injeções e até transplantes freiam a evolução dela.

“Em geral, são utilizadas drogas que suprimem a resposta exacerbada do sistema imunológico contra determinado tecido ou órgão. Mas isso também pode tornar a pessoa em tratamento mais suscetível a infecções”, contextualiza a médica Claudia Cristina Ferreira Vasconcelos, coordenadora do Departamento Científico de Neuroimunologia da Academia Brasileira de Neurologia (ABN).

A depender da gravidade e do tempo de diagnóstico, a autoimunidade pode ser combatida ainda por um transplante autólogo de células-tronco. “O método funciona como se você resetasse o sistema imune, começasse do zero”, traduz o endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, pesquisador do Centro de Terapia Celular do Hospital das Clínicas da FMRP-USP.

Para realizar o procedimento, que é agressivo, o paciente precisa atender a uma série de critérios. Enquadrando-se, os médicos internam o voluntário e retiram uma parte da medula óssea, que é onde as células do sistema imunológico são produzidas.

Então, ele é submetido a uma sessão de quimioterapia para “desligar” completamente o sistema imunológico. Alguns dias depois, as células-tronco da medula óssea são implantadas para que o sistema imunológico se reinicie.

Após passar por todo esse processo, o sistema de defesa deixaria de liberar autoanticorpos. “Fatores genéticos e ambientais que predispõem à doença, porém, não desaparecem. Por isso, não falamos em cura, mas em retardar a evolução por anos”, diz Couri.

Em estudo recém-publicado, pesquisadores suecos reportaram resultados animadores da técnica. Avaliando 174 pessoas com esclerose múltipla remitente-recorrente, dois terços não apresentaram sinais da doença mais de uma década depois de se submeter ao procedimento.

Como conclusão, os especialistas recomendam que o transplante seja considerado um tratamento-padrão para aqueles que apresentam a doença muito ativa.

+ Leia também: Transplante de medula se consolida como tratamento para esclerose múltipla

Apesar de a ciência estar longe de entender os mecanismos por trás de cada uma das dezenas de doenças autoimunes, há de se considerar o rápido progresso feito em menos de um século pelo tratamento das condições.

A passos largos, especialistas encontram formas de domar o exército imunológico, mostrando a ele que atacar sua terra natal não é uma batalha que compensa — longe disso!

Agentes duplos

Células e moléculas que podem passar a agredir nosso próprio corpo

Monócitos

Essenciais na varredura da corrente sanguínea. Removem tecidos mortos, células cancerosas e corpos estranhos.

Macrófagos

Quando o monócito entra em um tecido, ele vira um macrófago e engloba partículas estranhas para eliminá-las — a fagocitose.

Neutrófilos

Eles também combatem infecções pelo processo de fagocitose. São os leucócitos mais comuns no nosso sangue.

Células natural killer

Assassinas natas, mal são formadas pelo sistema imunológico e já saem liberando enzimas contra infecções e cânceres.

Citocinas

Produzidas quando células imunológicas detectam algo estanho, conduzem e modulam o plano de ataque.

Autoanticorpos

São os anticorpos criados pelas células B que são especializados em agredir estruturas próprias do nosso corpo.

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