Aborto: a discussão sob a ótica da saúde
Projeto de lei em tramitação pode colocar em risco a vida de meninas e mulheres, alertam especialistas
O aborto voltou ao centro das atenções na última semana, com a aprovação pela Câmara dos Deputados do regime de urgência para o Projeto de Lei 1904/24, que equipara a interrupção de uma gestação acima de 22 semanas ao homicídio.
Apresentada pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros 32 parlamentares, a proposta altera o Código Penal, incluindo punição à interrupção da gravidez em decorrência de violência sexual. De acordo com o projeto, a pena estipulada seria de 6 a 20 anos de reclusão, a mesma do homicídio simples e superior à condenação por estupro, que varia entre 8 e 15 anos de prisão.
O projeto gerou protestos nas ruas e manifestações nas redes sociais. E, além da opinião pública, especialistas em saúde pública e direitos humanos criticaram a iniciativa.
“A grande maioria dos estupros vitimam meninas de 10 a 14 anos, violentadas por seus parentes, então o projeto vai, sobretudo, forçar a gravidez decorrente de estupro em crianças e adolescentes. Além disso, vai criminalizar mulheres vítimas”, destaca a advogada e doutora em direitos humanos Eloísa Machado, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
“A consequência imediata e óbvia é o desestímulo à procura de serviços de saúde por medo de criminalização, podendo gerar impunidade para violadores e mortes para mulheres que vão buscar o aborto inseguro”, completa a especialista.
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) divulgou nota pública contrária ao PL.
“Representa um retrocesso aos direitos de crianças e adolescentes, aos direitos reprodutivos e à proteção das vítimas de violência sexual, violando a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e diversas normas internacionais das quais o Brasil é signatário”, destaca o texto.
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O aborto legal no Brasil
O aborto é legalmente permitido no Brasil em três contextos específicos: gravidez ocasionada por estupro, risco à vida da mulher e anencefalia do feto.
Os dois primeiros casos constam no Código Penal, promulgado em 1940. Já a autorização em episódios da malformação associada à ausência parcial do cérebro que inviabiliza a vida foi conferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012.
O procedimento deve ser oferecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Contudo, a falta de informação sobre direitos, a escassez de serviços e de profissionais capacitados, e a objeção por parte de equipes médicas são desafios no cumprimento da legislação.
A advogada Gabriela Rondon, pesquisadora na Anis – Instituto de Bioética avalia como essencial a manutenção da garantia da realização do aborto legal no Brasil.
“Para evitar que uma menina ou uma mulher seja obrigada a levar adiante uma gestação que é fruto de violência, ou seja, que ela não seja obrigada a suportar as consequências de um crime do qual ela foi a vítima. Ou também que não seja obrigada a levar adiante uma gestação considerada inviável, quando já se sabe com toda a certeza que o filho não nascerá com vida”, frisa Gabriela.
O limite máximo para interrupção da gravidez de forma legal não está previsto na legislação brasileira.
“Na lei atual, não há requisito de tempo para solicitar o aborto. Também não há requisitos como de judicialização ou de registro de boletim de ocorrência em caso de violência. Apenas é necessário o consentimento da pessoa que gesta e que se enquadre em algum desses casos”, explica.
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Violência sexual, uma epidemia
Uma em cada sete mulheres em torno dos 40 anos de idade já fez ao menos um aborto no Brasil, de acordo com uma pesquisa de 2021. O estudo, liderado pela antropóloga Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB), consultou 2 mil pessoas em 125 municípios.
O levantamento revela que 52% das entrevistadas fizeram o procedimento com 19 anos ou menos. Dessas, 46% eram adolescentes entre 16 e 19 anos, enquanto 6% eram meninas entre 12 e 14 anos.
Na faixa etária mais jovem, a gravidez indesejada costuma estar associada ao abuso. A agressão sexual foi a forma mais frequente de violência contra meninas de 10 a 14 anos no país em 2022.
Os dados são da mais nova edição do Atlas da Violência, divulgada nesta terça-feira, 18. Entre bebês e meninas de até nove anos, o abuso sexual está associado a 30% dos casos de violência.
Os diversos riscos à vida de uma menina grávida
O marco inicial da vida reprodutiva de uma mulher se dá com a chegada da primeira menstruação, chamada de menarca. Mas o momento não é um indício de que aquela menina esteja apta a engravidar, como detalha a médica ginecologista Erika Krogh, membro da Comissão de Infanto Puberal da Febrasgo.
Ela pontua que existem grandes mudanças corporais durante uma gravidez para as quais uma menina não está preparada.
“Neste contexto, a gestação leva a riscos muito grandes de anemia, parto prematuro e hemorragia pós-parto, porque se trata de um útero que ainda não está apto a gestar. Elas também têm um risco maior de desenvolver a pressão alta da gravidez, ou pré-eclâmpsia, entre outras alterações”, pontua Erika.
Em 2023, foram registrados no Brasil quase 14 mil nascimentos de crianças cujas mães apresentavam 14 anos ou menos. Os indicadores constam no Painel de Monitoramento de Nascidos Vivos, do Ministério da Saúde. Os dados parciais deste ano revelam que, até maio, o número chegou a 3,9 mil.
Um estudo norte-americano conduzido por especialistas do UT Southwestern Medical Center revelou dados preocupantes sobre a gestação precoce.
Além dos impactos já mencionados para as grávidas, os autores descrevem ainda consequências para os bebês. Os pequenos estão mais suscetíveis aos problemas do parto prematuro, como baixo peso ao nascer e maior probabilidade de internação em unidades de terapia intensiva (UTIs) neonatais.
A pesquisa destaca também que as chances de complicações são ainda mais altas para as jovens que apresentam sobrepeso ou obesidade.
A seguir, vamos contextualizar em detalhes a magnitude das complicações que podem acometer meninas gestantes.
Pré-eclâmpsia: é um distúrbio que leva ao aumento da pressão arterial, que geralmente ocorre a partir das 20 semanas de gravidez. Afeta entre 5 e 10% das gestantes e figura entre as principais causas de mortalidade materna. No Brasil, a incidência varia de 1,5% a 7%.
Eclâmpsia: o atraso na detecção da pré-eclâmpsia a ausência de medidas de controle podem favorecer o desenvolvimento do quadro. A situação mais grave, que pode levar à morte, é caracterizada pelo surgimento de convulsões durante a gravidez. No entanto, os casos são mais raros, afetando cerca de 0,5% das brasileiras.
Parto prematuro: globalmente, a prematuridade é a principal causa de morte em crianças menores de 5 anos, segundo a OMS. Um recém-nascido é considerado prematuro quando chega ao mundo antes de completar 37 semanas de gravidez.
Para as crianças, as consequências podem ser graves e se estender ao longo da vida, com destaque para deficiências, dificuldade de aprendizagem, além de danos visuais e auditivos.
Anemia: a deficiência de ferro e de vitamina B12 estão entre as principais causas do problema entre as grávidas. É um quadro bastante comum no período gestacional e aumenta o risco de aborto espontâneo, parto prematuro, restrição do crescimento fetal e hemorragia.
Depressão pós-parto: violência, limitações físicas e falta de planejamento, questões que frequentemente permeiam a gestação de meninas, são fatores de risco conhecidos para a condição.
As mudanças bruscas na rotina, afastamento de amigos e um conjunto de novas responsabilidades impostas pela maternidade precoce também contribuem para o surgimento do quadro.
Sem a identificação do transtorno e cuidado adequado, as consequências podem ser graves.
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Riscos de um aborto clandestino
Segundo a OMS, quase metade de todas as gestações são indesejadas, um total de 121 milhões por ano. Três em cada dez terminam em aborto induzido. Restringir o acesso não reduz o número de procedimentos, só aumenta significativamente a insegurança na sua realização.
“A interrupção da gestação é uma realidade na vida sexual e reprodutiva de mulheres. Por isso, é visto como uma questão de saúde pública: quando há criminalização, as mulheres recorrem a serviços clandestinos, o que aumenta o número de agravos e até mortes”, enfatiza Eloísa, da FGV.
No Brasil, o aborto está entre as cinco principais causas de morte materna. Fora da lei, o abortamento é feito por pessoas sem as informações ou habilidades necessárias ou em ambientes que não contam com os padrões médicos adequados.
A cada ano, cerca de 7 milhões de mulheres nos países em desenvolvimento são tratadas em hospitais devido a complicações resultantes do processo.
“Os maiores riscos são o surgimento de infecções, que podem evoluir para a retirada do útero e até levar à morte e hemorragia por perfuração uterina, com possibilidade de lesão de órgãos adjacentes ao útero, também com risco de evolução para o óbito”, alerta o ginecologista e obstetra Ricardo Porto, membro da comissão de assistência ao abortamento, parto e puerpério da Febrasgo.
Os riscos para a saúde incluem ainda:
- inflamação de membrana da cavidade abdominal (peritonite)
- septicemia
- aborto incompleto, devido a falha na remoção ou expulsão de todo o tecido gestacional do útero
- danos permanentes que podem impedir gestações futuras
- prejuízos para a saúde mental
Prolongamento da gestação
É claro que o ideal seria, nestes casos, interromper a gestação o quanto antes. Só que, apesar dos dispositivos legais vigentes, é comum que mulheres encontrem uma série de empecilhos para a realização do procedimento.
A desigualdade no acesso aos serviços capacitados no país, por exemplo, é retratada em uma pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A partir de dados públicos de 2019, os estudiosos identificaram que apenas 3,6% dos municípios oferecem o recurso nas redes de saúde.
Uma vez superado esse primeiro obstáculo, o imbróglio se mostra ainda mais complexo.
“Diversas vezes, quando se chega a essas unidades, há um retardo na realização do procedimento por uma série de barreiras indevidas que são impostas, seja de documentações desnecessárias, excesso de consultas, ou mesmo pela própria reprodução do estigma”, afirma Gabriela.
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Os próprios médicos podem acabar atrapalhando a garantia desse direito. No exercício da medicina, a chamada objeção de consciência prevê a recusa de ações devido a conflitos com os valores individuais do profissional.
Mas uma norma técnica do Ministério da Saúde afirma que não cabe negar o aborto legal utilizando esse pretexto com base:
- Em caso de necessidade de abortamento por risco de vida para a mulher
- Em qualquer situação de abortamento juridicamente permitido, na ausência de outro médico que o faça e quando a mulher puder sofrer danos ou agravos à saúde em razão da omissão
- No atendimento de complicações derivadas de abortamento inseguro, por se tratarem de casos de urgência
Ainda segundo o documento, em caso de omissão, o especialista envolvido pode ser responsabilizado civil e criminalmente pela morte da paciente ou pelos danos físicos e mentais que ela venha a sofrer.
“Profissionais de saúde que criam óbices [empecilhos] indevidos para a interrupção de gestação estão constrangendo ilegalmente mulheres e, a depender do cenário, podem incorrer em crime e faltas disciplinares”, afirma a professora da FGV, Eloísa Machado.
Estas normas regulam os chamados direitos sexuais e reprodutivos. “A Organização das Nações Unidas considera, inclusive, que a obrigação de gestação em caso de estupro equivale à tortura. As hipóteses de interrupção da gestação no país atendem o mínimo de preservação dos direitos da mulher”, acrescenta Eloísa.
O atendimento qualificado destas mulheres envolve a escuta empática, defende a médica Fernanda Garanhani de Castro Surita, vice-presidente da Comissão Nacional Especializada de Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).
“Em uma situação de violência sexual, que une todo tipo de dor psíquica e física, o atendimento médico deve ser muito cuidadoso, no sentido de ouvir, acolher, não julgar, apoiar as decisões da vítima e de forma alguma revitimizá-la. Ou seja, fazer com que se sinta culpada, retomar pontos dolorosos de sua história ou ainda descredibilizar o que está sendo relatado”, pontua Fernanda.