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A batalha pela vacinação

Medos plantados, notícias falsas e o desgoverno recente no Programa Nacional de Imunizações (PNI) expõem brasileiros a doenças perigosas e evitáveis

Por Chloé Pinheiro, em parceria com o Pulitzer Center*
Atualizado em 18 mar 2023, 09h33 - Publicado em 17 mar 2023, 14h22
quedas nas coberturas vacinais no Brasil
Expectativa para os próximos anos é positiva, mas há uma série de desafios para retomar as coberturas invejáveis do passado (Foto: Jonathan Gelber, Andriy Onufriyenko e Ewerton Manzotte - Getty Images / Ilustração: Rodrigo Damati/SAÚDE é Vital)
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A gente só sobrevive e vive bem nos dias de hoje graças a vacinas. Mas nunca antes na história deste país elas protagonizaram tanto debate, tanta briga e tanta publicação em redes sociais.

Durante décadas, vacinas fizeram parte natural da paisagem e do cotidiano: havia campanha, pegava-se a caderneta, tomava-se a picada e pronto! Ninguém ficava discutindo eficácia, efeitos colaterais, teorias conspiratórias ou planos de dominação mundial.

Sem alarde ou polêmica, bilhões de doses aplicadas por aí — antes e depois da pandemia — salvaram crianças, adolescentes, adultos e idosos. Menos mortes, menos sequelas, menos dias perdidos de escola e trabalho.

Só a taxa de mortalidade infantil no país despencou de mais de 100 óbitos a cada mil nascidos vivos para cerca de dez.

Em alguns anos, porém, o outrora robusto Programa Nacional de Imunizações (PNI), formulado em 1973, ficou em frangalhos. E, no boca a boca e de post em post, fake news encobriram a defesa das vacinas.

“Havia uma tendência de queda nas coberturas vacinais desde 2016, mas ela começou a ser revertida em 2018. Porém, a partir de 2019, as ações deixaram de ser intensificadas e houve um retorno brusco para uma média de coberturas similar à dos anos 1980”, contextualiza a epidemiologista Carla Domingues, que foi coordenadora do programa quando ele era referência global.

Era!

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Hoje, o Brasil está entre os dez países com mais crianças pequenas sem nenhuma dose das vacinas de rotina, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), ao lado de nações com históricas dificuldades, como Congo, Índia e Paquistão.

“Fomos de orgulho a pária”, lamenta a infectologista Cristiana Toscano, da Universidade Federal de Goiás (UFG), que integra o grupo de experts em imunização da OMS.

O que explica isso? Problemas estruturais? Sim, e muitos. Hesitação vacinal? Sem dúvida, ela cresceu e pegou carona nas falas antivacina que perseguem ainda hoje as doses contra a Covid e abalam a confiança nos imunizantes como um todo.

É irônico: a mesma pandemia que mostrou, na prática, como essa estratégia poupa vidas também atiçou o movimento negacionista.

Mas a mudança de governo marca um novo discurso — e, se espera, um novo rumo para o PNI. “Quero fazer um apelo a cada um para tomar as vacinas, porque elas são uma garantia de vida”, afirmou o presidente Lula no lançamento do Movimento Nacional de Vacinação, em fevereiro, ao receber a recém-chegada vacina bivalente contra o coronavírus.

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Palavras ajudam, mas precisaremos de muito mais para reverter a situação.

Perigo iminente

coberturas vacinais no Brasil
(Foto: Jonathan Gelber, Andriy Onufriyenko e Ewerton Manzotte - Getty Images / Ilustração: Rodrigo Damati / Ícones: Editoria de arte Veja Saúde/SAÚDE é Vital)

Desde que comecei a trabalhar nesta reportagem, no fim de 2022, martelava na minha cabeça a dúvida: será que estou exagerando em me preocupar tanto assim? Depois de ouvir mais de 25 pessoas, de autoridades internacionais no assunto a pessoas que caem em notícias falsas, posso afirmar que não.

A queda nas coberturas é uma tendência mundial e representa um perigo real. “O Brasil é um dos países em maior risco para o retorno de doenças já controladas”, afirma a epidemiologista Ana Brito, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

Perdemos o certificado de país livre do sarampo em 2018 e, entre 2018 e 2021, já notificamos 40 mil casos da infecção. Casos de difteria foram registrados aqui e nos arredores, e a poliomielite pode voltar a dar as caras no nosso território. A mortalidade infantil voltou a subir, com cerca de 20 mil óbitos evitáveis ao ano por quadros como diarreia e pneumonia.

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A desigualdade social tem culpa no cartório, com o agravamento da fome e da desnutrição, mas a falta ou o atraso na vacinação dão sua contribuição.

+ Leia também: Os números não mentem: entenda a matemática das vacinas

Acredite: a aplicação de todos os imunizantes para o público infantil está abaixo da meta no Brasil. No caso da Covid, então…

De acordo com a Fiocruz, a cobertura entre os 4 e 5 anos de idade estava em torno de 5% até novembro do ano passado, e a adesão à dose para bebês engatinha.

Não faz sentido: com exceção dos idosos, eles são o grupo de maior risco para a infecção do ponto de vista etário. O coronavírus matou uma criança por dia em 2022.

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“Fora os efeitos neurológicos e cardiovasculares de longo prazo, que ainda estão sendo estudados”, aponta a imunologista Cristina Bonorino, professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre.

Os adultos não fogem ao que se tornou a regra. A dose que nos protege da gripe encalhou nos postos de saúde ano passado. E, depois de um engajamento invejável nas primeiras doses contra a Covid, os reforços patinam.

A última edição do inquérito de cobertura vacinal, que checou as carteirinhas de 38 mil crianças de todas as regiões brasileiras, escancara a complexidade da coisa. Inclusive no quesito socioeconômico.

Apesar de desfrutar de um sistema de saúde privilegiado, o estrato A, o mais rico, teve a maior queda na imunização: de 76 para 30%.

“Mas essa diferença é heterogênea. Em alguns locais, o estrato D tem níveis mais baixos, e vice-versa”, pondera o médico José Cassio de Moraes, da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, um dos autores do levantamento.

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Os motivos por trás da não vacinação variam entre as camadas da sociedade. Mas antes havia homogeneidade no ritual da vacinação — e ela foi corroída nos últimos anos.

Barreiras de acesso

barreiras de acesso às vacinas
(Foto: Jonathan Gelber, Andriy Onufriyenko e Ewerton Manzotte - Getty Images / Ilustração: Rodrigo Damati / Ícones: Editoria de arte Veja Saúde/SAÚDE é Vital)

Quando as coberturas vacinais começaram a cair, em 2016, a explicação era clara para os especialistas: fora a baixa percepção de risco pela população, o subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS), intensificado a partir da emenda constitucional 95, aprovada nesse mesmo ano, que estabeleceu um teto de gastos públicos.

“Essa fragilização afetou o funcionamento das salas de vacinação e o fornecimento de imunizantes”, conta o epidemiologista e sanitarista Eliseu Waldman, professor da Universidade de São Paulo (USP).

A escassez de investimentos tem efeitos diretos e indiretos. Vamos tomar como exemplo as vacinas BCG, que protege contra a tuberculose, e contra a hepatite B, que deveriam ser administradas em recém-nascidos.

Com a crise nas contas, as maternidades redirecionaram recursos e profissionais para manter a assistência e, assim, foram parando de ofertar o serviço. Não à toa, a cobertura dessas doses está baixa, na casa dos 60%.

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No inquérito vacinal, quase 30% dos pais responderam que não conseguiram vacinar os filhos quando foram aos postos. Nem sempre eles voltam, e a oportunidade, quando existe, é perdida.

“Aumentamos as vacinas no calendário, mas não oferecemos alternativas para as novas configurações sociais da população, com pais e mães trabalhando fora e cada vez menos disponíveis para levar seus filhos às unidades de saúde”, avalia o infectologista Julio Croda, professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

A sala de vacinação é responsabilidade dos municípios, mas o Ministério da Saúde pode (e deve) fomentar esses espaços, dando orientação, capacitação e até incentivo financeiro a cidades que batem as metas. Por falar em governo federal…

No olho do furacão

A pandemia virou o sistema de saúde de pernas para o ar. Exigiu mais e mais verbas, direcionou a assistência médica às vítimas da Covid, drenou esforços do PNI e afastou o povo de consultas, exames e, num primeiro momento, vacinas.

Mas ela não carrega a responsabilidade pela bagunça sozinha. Países como Uruguai, Chile e Costa Rica conseguiram manter níveis de imunização próximos ao ideal.

No Brasil, porém, o governo federal marcou gol contra — e antes só fosse com as frases do ex-presidente Jair Bolsonaro alertando que quem tomasse a vacina da Covid viraria jacaré.

“Apesar dos problemas orçamentários, no começo havia uma equipe preparada no Ministério da Saúde. Quando o governante passa a trocar ministros e outros cargos-chave, em especial na pandemia, nomeia pessoas despreparadas para essa função primordial que é vacinar. Aí passamos a ver uma incompetência administrativa, com doses estragando, problemas na distribuição e ausência de campanhas de comunicação”, critica o jurista Fernando Aith, docente da Faculdade de Saúde Pública da USP.

A atual secretária de Vigilância e Saúde (departamento ao qual ficava subordinado o PNI), a epidemiologista Ethel Maciel, diz ter deparado com um cenário caótico ao assumir a pasta, em janeiro de 2023.

Conversamos no final de fevereiro, depois de seus primeiros 45 dias de gestão tentando arrumar a casa. “Foram bilhões de reais perdidos em vacinas vencidas, e não tínhamos doses contra a Covid-19 o suficiente nem para as crianças nem a vacina bivalente para os grupos prioritários”, descreve.

“Além disso, havia falta de estoque das vacinas contra tuberculose, poliomielite, hepatite B e tantas outras”, continua.

A falta de comunicação sobre a importância das vacinas, um dos pontos mais críticos para a manutenção das coberturas, também começa a ser decifrada ao abrir essa caixa-preta. “Não havia mais contratos com agências de publicidade. Precisamos refazer tudo para lançar as ações deste ano”, relata Ethel.

Durante a pandemia, campanhas nacionais para restabelecer os níveis de proteção contra poliomielite, sarampo e outras doenças foram tímidas, para dizer o mínimo, e beiraram a inexistência em se tratando de Covid.

desmonte do PNI no governo bolsonaro
(Ícones: Editoria de arte Veja Saúde/SAÚDE é Vital)

A desinformação no poder

O ex-ministro da Saúde e general Eduardo Pazuello ficou famoso pela tragédia de Manaus e pela celeuma da cloroquina — droga que não se mostrou eficaz contra a Covid.

Mas foi a partir da entrada do médico Marcelo Queiroga, em março de 2021, que a vacinação desgovernou de vez, culminando na extinção de grupos técnicos e de pesquisa e na ausência por quase um semestre de um coordenador para o PNI após a saída da enfermeira Franciele Fantinato em julho de 2021, no auge da pandemia.

Um funcionário do órgão que prefere não se identificar relata sensação de mãos atadas à época: “Elaborávamos recomendações que nem sempre eram seguidas, e o cúmulo de tudo foi a questão da vacinação infantil da Covid”.

Em janeiro de 2022, o governo convocou especialistas para “ouvir os dois lados” sobre o tema. Favoráveis à vacinação munidos de uma pilha de estudos comprovando seus benefícios, estavam infectologistas, pediatras e sociedades médicas.

Contrário à medida, um corpo de profissionais sem experiência na área, amparando-se em informações distorcidas ou mentiras para sugerir que as vacinas eram perigosas.

+ Leia também: Vacinação infantil contra a Covid-19: a epidemia da desinformação

Todo mundo é capaz de citar um boato, alguns até surreais, sobre a vacina da Covid, mas os rumores não afetaram tanto a população adulta, que aderiu a ela em peso, apesar de agora andar meio devagar com os reforços.

Só que as crianças estão amplamente desprotegidas por causa de medos plantados na cabeça dos pais, inclusive por alguns médicos.

Fato: as vacinas foram testadas, são seguras, eficazes e diminuem o risco de morte e hospitalizações pela doença. Há evidências sólidas disso, como uma revisão de 17 pesquisas envolvendo mais de 10 milhões de crianças e adolescentes, recém-publicada no Journal of the American Medical Association (JAMA).

Mas ainda se espalha por aí que as picadas causam miocardite — inflamação do coração considerada uma reação muito rara e associada com mais frequência à própria Covid — ou mesmo que crianças estão morrendo “do nada” por causa delas.

“A desinformação e a desconfiança atingem a classe médica, deixando as famílias inseguras”, diz o infectologista Renato Kfouri, da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).

E ai de quem falar a favor das vacinas. Kfouri e outros médicos presentes na audiência tiveram seus dados pessoais vazados por políticos alinhados ao discurso antivacina e sofreram uma série de ameaças. Os pais que imploraram pela chegada das vacinas pediátricas também foram perseguidos.

Na esteira da polarização ideológica, as vacinas viraram munição nas trincheiras da internet.

desinformação antivacina na internet
(Foto: Jonathan Gelber, Andriy Onufriyenko e Ewerton Manzotte - Getty Images / Ilustração: Rodrigo Damati / Ícones: Editoria de arte Veja Saúde/SAÚDE é Vital)

O pediatra americano Peter Hotez, codiretor do centro de desenvolvimento de vacinas do Texas Children Hospital, acompanha há décadas o movimento antivacina, desde que sua filha foi diagnosticada com autismo nos anos 1990.

A condição é frequentemente associada aos imunizantes devido a um estudo fraudulento, conduzido por um médico cassado que lucrou com processos e queria vender suas próprias vacinas contra o sarampo — tudo bancado por famílias em busca de indenizações da indústria farmacêutica.

Hotez, que participou do desenvolvimento e da distribuição de 100 milhões de frascos contra a Covid-19 sem receber nenhum centavo da “big pharma”, vê um aumento sem precedentes de mensagens levantando dúvidas e falácias a respeito.

“Há dez anos, a pauta passou a ser usada por movimentos de extrema direita, se apoiando no conceito de ‘liberdade individual’ ou ‘liberdade médica’”, comenta o especialista.

Ele conta que, nos Estados Unidos, mais de 200 mil pessoas morreram mesmo depois que as vacinas da Covid chegaram, a maioria em estados com governos e populações reticentes à vacinação.

O movimento anticiência hoje mata mais do que as armas e os acidentes de carro por aqui, mas ainda não o olhamos como uma ferramenta letal. E isso tem se expandido para o resto do mundo, inclusive no Brasil”, alerta Hotez.

+ Leia também: Como o Brasil virou o país da cloroquina?

Eu sei, estamos cansados de falar de política, e esse nem é o foco desta publicação. Mas ela é um ponto nevrálgico para melhorar a confiança dos brasileiros nas vacinas.

“Como médico, é a coisa mais difícil me posicionar politicamente, pois fomos treinados para a neutralidade, mas isso é um resquício da mentalidade de que a ciência está em uma torre de marfim. Precisamos demolir essa torre para salvar vidas”, acredita Hotez.

Ao que tudo indica, os porta-vozes nacionais do movimento antivacina são poucos e estão perdendo engajamento com o fim do apoio federal. Mas ainda fazem barulho e estão organizados, atestam os cientistas que pesquisam essas redes.

“É mais fácil combater o problema agora, na raiz, do que esperá-lo crescer como em outros países”, diz a epidemiologista Denise Garrett, vice-presidente do Sabin Vaccine Institute, nos EUA.

A desinformação se alastrou em cima das doses de Covid, porém as narrativas assustadoras e descoladas da realidade se espraiaram para outros imunizantes — às vezes para a classe inteira. “Minha preocupação é que o que começou com o coronavírus contamine a visão sobre outras vacinas”, desabafa Hotez.

Nos grupos que atuam contra a vacinação, pipocam desde a velha história da relação com o autismo a mentiras sobre a picada contra a gripe. E, quando não vemos mais as doenças combatidas pelos imunizantes, como no caso da pólio, o risco de um evento adverso da vacina pesa mais do que o benefício na hora de levar o filho ao postinho.

+ Leia também: 5 mitos sobre vacinação amplamente difundidos hoje em dia

Podemos dizer, nesse caso, que a desinformação é um mercado que segue a lei da oferta e da demanda.

“A população tem demanda por esclarecimentos que nem sempre chegam a ela, e há uma oferta sistemática de informações falsas propositalmente espalhadas para gerar desconfiança”, interpreta o cientista de dados João Guilherme, pesquisador no Instituto Nacional de Ciência & Tecnologia em Democracia Digital, que participou de análises sobre o assunto.

As mensagens são transmitidas feito vírus e criadas sob medida. Para quem tem religião, a vacina entrega o “chip da besta”; para os mais céticos, a isca são textos cheios de termos técnicos; para os afeitos às teorias da conspiração, existe um plano de dominação mundial.

Na tela do celular, pessoas comuns, que nem sequer são antivacina, se assustam com o perigo iminente. Por trás disso tudo, há um balaio que inclui atores políticos e profissionais de saúde vendendo “cursos” e “terapias de desintoxicação”.

Nesse universo paralelo, tem até uma falsa síndrome pós-vacinal, muito parecida com o pós-Covid — esse sim, um problema real e evitável com a vacina.

E essas coisas acontecem debaixo dos olhos do próprio Conselho Federal de Medicina (CFM), que, em pleno 2023, ainda realiza audiências para questionar a obrigatoriedade da imunização contra Covid e nada faz para punir quem dissemina esse tipo de conteúdo. Procurado pela reportagem, o órgão não se manifestou.

impacto da desconfiança nas vacinas
(Ilustração: Rodrigo Damati / Ícones: Editoria de arte Veja Saúde/SAÚDE é Vital)

Mobilização “antiantivacina”

A OMS coloca a hesitação vacinal, a demora ou relutância em se imunizar, como uma das maiores ameaças à saúde da humanidade e a explica por meio de três Cs.

Primeiro, a complacência, quando não há a percepção do risco de deixar de se imunizar; depois, a conveniência do acesso; e, por fim, a confiança, abalada durante a pandemia. “Agora estamos falando em mais 2 Cs, a comunicação, que deve ser mais empática, e o contexto cultural e socieconômico em que a hesitação ocorre”, revela Kfouri.

Diante do tamanho do desafio, as ações do Ministério da Saúde não bastarão para resgatar o senso de importância e urgência das vacinas. Será preciso formar e capacitar melhor médicos e outros profissionais de saúde — que nem sempre estudam o tema a contento nas faculdades ou se atualizam a respeito — e mobilizar as big techs (Google, Facebook, Twitter…) e a imprensa, que também virou alvo de uma crise de confiança nos últimos tempos.

Quando fatos não mudam opiniões, talvez seja preciso reconquistar a confiança por outras vias. Por exemplo: e se a jornalista não fosse eu, um ente misterioso, mas seu neto, vizinho ou colega da igreja?

Essa é uma das apostas da Fiocruz dentro do projeto Pela Reconquista das Altas Coberturas Vacinais (PRCV). Realizado em parceria com a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), ele envolve, em primeiro lugar, a atuação na própria vacinação, apoiando municípios para resolver problemas de infraestrutura e capacitação profissional.

As ações começaram a ser executadas no ano passado em dois estados piloto, Amapá e Paraíba, que estavam com as coberturas em níveis preocupantes. E conseguiram elevar em poucos meses o nível de proteção da população. “Os dois foram os únicos estados que bateram a meta da poliomielite”, celebra a médica Lurdinha Maia, a coordenadora do projeto da Fiocruz.

Agora, o PRCV parte para outro eixo importante, a comunicação, por meio de ações inovadoras que furem a “bolha”, termo usado para descrever as redes digitais e sociais em que as pessoas compartilham informações. Fui à Paraíba em fevereiro para acompanhar uma dessas frentes, a ação Jovens Repórteres.

A ideia é treinar adolescentes de comunidades carentes de João Pessoa para produzir conteúdo sobre a importância da imunização e disseminá-lo entre seus próprios círculos. Ou seja, furar a bolha com alguém que já está na bolha.

“Queremos chegar aos grupos das famílias, dos bairros, das igrejas e do trabalho”, vislumbra Isabel Cristina Alencar de Azevedo, líder do eixo de comunicação e educação do projeto.

Em parceria com a Central Única das Favelas (CUFA), a equipe montou um workshop de três dias com 30 jovens de nove comunidades da cidade. Uma turma diversa: evangélicos, mães adolescentes, calouros de faculdade, meninos tímidos, meninas com ares de influenciadoras digitais…

Eles aprenderam conceitos como imunidade coletiva e responsabilidade social, as raízes da desinformação e como produzir conteúdo audiovisual com o celular. Também conversaram com autoridades de saúde na cidade e, findo o treinamento, vão elaborar conteúdos regulares com o auxílio de uma bolsa e um smartphone.

Acompanhei de perto uma dessas turmas, da comunidade Muçumagro, composta de cinco jovens, criativos e inspiradores, cuja história é apresentada em um vídeo que acompanha esta reportagem (clique aqui para assistir).

Assim que os conheci, eles já quiseram sair pelas ruas conosco para ouvir a opinião dos vizinhos de Muçumagro sobre os imunizantes.

De câmera e gravador na mão, escutamos de tudo: do homem que infartou e atribuiu aquilo à vacina ao sujeito que não precisa se proteger porque “tem Deus no coração”, passando pela mãe que não consegue vacinar seu filho porque o posto do bairro está fechado depois de ser assaltado repetidas vezes.

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Para mim — e imagino que para eles — logo ficou claro que um projeto como esse, apesar de ser um trabalho de formiguinha, é o tipo de coisa que pode facilitar o complicado diálogo com quem tem receio da picada. “Esses jovens têm uma coisa que nós, de fora, não temos: a credibilidade que é dada pela comunidade”, argumenta Lurdinha.

A médica, que é paraibana, foi coordenadora do PNI e esteve conosco lá na ponta, no calor de João Pessoa, conversando por horas e horas com a turma.

Seu colega na criação do PRCV é o médico Akira Homma, bastião da vacinação no país, que, já na casa dos 80 anos, também não perde o fôlego. Os dois nem precisariam estar na ativa, mas a vacinação é algo pelo qual já batalharam tanto que seguem ali, repensando táticas para vencer no front.

Hoje, programas como o PRCV estão fazendo tudo “na unha”, com recursos limitados. No entanto, grassa a perspectiva de melhora com a iniciativa lançada pelo governo federal e a união entre estados, municípios e sociedade civil.

“Estamos engajados em um grande movimento nacional para atacar esse amplo conjunto de causas que nos trouxe até aqui”, comenta Cipriano Maia, presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass).

Ele espera poder ampliar as oportunidades de vacinação, como ocorreu durante a pandemia, com postos em shoppings, farmácias e estacionamentos, além da retomada da aplicação nas escolas.

Já o Ministério da Saúde vai se reunir com autores de trabalhos como o inquérito vacinal e o PRCV para entender e superar a hesitação e as barreiras de acesso.

reconquista das coberturas vacinais
(Foto: Jonathan Gelber, Andriy Onufriyenko e Ewerton Manzotte - Getty Images / Ilustração: Rodrigo Damati / Ícones: Editoria de arte Veja Saúde/SAÚDE é Vital)

O desafio será duplo, porque é preciso engajar a população e os profissionais de saúde não só diante das vacinas existentes mas para as que estão por vir.

Ora, com o avançar da ciência, é de prever novos tipos de imunizantes chegando com celeridade, muitos deles à base de RNA mensageiro, a tecnologia utilizada de forma pioneira pela vacina da Pfizer contra Covid-19 — e, não à toa, uma das mais atacadas.

“É uma plataforma muito promissora, por não envolver a manipulação do vírus em si e desencadear uma resposta imune mais específica do que as das vacinas de vírus inativado ou atenuado”, diz o farmacêutico Gustavo Mendes, que liderou a aprovação das doses contra a Covid na Anvisa e hoje participa do International Vaccine Institute, braço da OMS para promover o desenvolvimento de vacinas melhores e mais acessíveis mundo afora.

velocidade das vacinas
(Foto: Jonathan Gelber, Andriy Onufriyenko e Ewerton Manzotte - Getty Images / Ilustração: Rodrigo Damati / Ícones: Editoria de arte Veja Saúde/SAÚDE é Vital)

A vacinação viabiliza um futuro melhor num planeta em que as pessoas vivem mais, as doenças crônicas não arrefecem, há risco iminente de novas epidemias e a desigualdade social só se agrava.

Em breve, veremos imunizantes inéditos contra chikungunya e vírus sincicial respiratório (VSR) — aliás, a Anvisa acaba de aprovar um imunizante contra os quatro tipos de vírus da dengue do laboratório Takeda.

E quem quiser envelhecer bem deverá continuar (ou voltar) a dar os braços às vacinas. “Depois da vacinação em massa, a expectativa de vida no mundo aumentou, em média, 30 anos. Percebemos, então, que os idosos vão perdendo a imunidade natural, ficando mais suscetíveis a infecções. E é por isso que também precisam se vacinar”, diz a geriatra Maísa Kairalla, presidente da Comissão de Vacinação da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG).

Pare e reflita: a mesma estratégia de saúde pública que salva crianças é uma das chaves para a longevidade — e, não à toa, vêm chegando ao Brasil produtos próprios para o público mais velho, como novas vacinas contra herpes-zóster e gripe.

+ Leia também: Por que as vacinas são essenciais no processo de envelhecimento?

O PNI completa 50 anos de vida em 2023 vítima do próprio sucesso, de erros de gestão e de ataques negacionistas. O resgate que começa a se operar não é menos importante em meio a tantos desconcertos na área da saúde ou na economia.

Basta pensar nas consequências da falta de vacinação, algo que já vivenciamos com a Covid: internações, hospitais cheios, carência de remédios, complicações e sequelas, perda de produtividade…

“A prevenção tem sempre a melhor custo-efetividade. Com menos recursos, temos mais impacto, principalmente nos segmentos que, na minha visão, devem ser o foco do sistema de saúde: a saúde infantil, materna e dos idosos”, analisa Waldman.

Só que o Brasil, que era um farol nesses mares, está ficando para trás, enquanto o resto do mundo começa a usar a vacina hexavalente no lugar da pentavalente e abandona as gotinhas contra a poliomielite.

Por fim, lutar em conjunto pela retomada das coberturas vacinais pode ser um caminho para reconstruir as pontes que ruíram nos últimos anos. Como diz a antropóloga Heidi Larson, diretora do Vaccine Confidence Project, as vacinas funcionam como uma espécie de janela para outras questões tão inerentes dos nossos tempos, como a erosão da confiança nas instituições e a perda da capacidade de pensar em grupo.

“Vacinar é tanto um direito quanto um dever de cidadania e solidariedade, parte da vida numa sociedade democrática. Não só eu protejo a mim e a minha família, mas contribuo para que toda a comunidade esteja protegida”, resume Aith. Precisamos reconquistar esse senso de coletividade e o orgulho das vacinas. Por nós. E pelo resto do mundo.

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Veja as campanhas de vacinação previstas pelo Ministério da Saúde para 2023

campanha vacinação 2023
(Foto: Jonathan Gelber, Andriy Onufriyenko e Ewerton Manzotte - Getty Images / Ilustração: Rodrigo Damati / Ícones: Editoria de arte Veja Saúde/SAÚDE é Vital)

Fontes complementares: Gustavo Cabral, imunologista do Instituto de Ciências Biomédicas da USP; Adriana Ilha da Silva, ex-coordenadora do Laboratório de Internet e Cultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo e atual chefe de gabinete da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde

*Essa reportagem foi produzida em parceria com o Pulitzer Center 

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