Vinte dias depois do nascimento de Benício, seu segundo filho, Regiane Nunes, de Osasco, recebeu uma notícia inesperada. O teste do pezinho, feito ainda na maternidade, acusava uma alteração e a dona de casa deveria procurar quanto antes a Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais, a Apae. “Descobrimos logo cedo que Benício tinha fenilcetonúria e, por isso, precisaria controlar a dieta e tomar uma fórmula especial para o resto da vida”, conta a mãe do menino, que, sete anos depois, está muito bem de saúde e gosta mais de brincar do que de estudar. A rapidez no diagnóstico foi crucial para impedir que o distúrbio de nome complicado prejudicasse o desenvolvimento do garoto.
“Portadores dessa condição acumulam grandes doses de fenilalanina, substância que, em excesso, afeta os neurônios e gera outras repercussões pelo organismo”, explica o médico Zan Mustacchi, presidente do Departamento de Genética da Sociedade Brasileira de Pediatria. Embora o tratamento seja relativamente simples, a eficácia completa depende que ele seja iniciado ainda nos primeiros meses de vida. E essa agilidade na conduta, por sua vez, requer detecção precoce, de preferência poucos dias depois de o bebê vir ao mundo. É aí que entra o teste do pezinho, procedimento trazido pela Apae de São Paulo ao país em 1976 e que, de lá pra cá, tem permitido salvar (ou melhorar) a vida de milhares de crianças como Benício.
A técnica veio dos Estados Unidos e inovou pela seguinte sacada: coletar o sangue do recém-nascido com um furinho no calcanhar e acomodá-lo em um papel-filtro que, mais duradouro, poderia ser enviado até pelos Correios para análise. Um médico exerceu papel fundamental na introdução do método por aqui, Benjamin José Schmidt (1931-2009). “Ele foi o primeiro profissional brasileiro a defender, junto à Apae, um exame que detectasse rapidamente desordens genéticas importantes”, conta Mustacchi.
Referência na triagem neonatal, o teste do pezinho se tornou obrigatório por lei em todo o território nacional em 1992. Hoje, o SUS fornece gratuitamente a versão que flagra seis doenças, caso da fenilcetonúria. “A implementação é um marco na saúde pública do país, que se destaca internacionalmente pela alta abrangência do método”, diz João Baccara, coordenador de Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde.
O teste do pezinho é feito em alguns minutos, mas sua importância pode durar uma vida toda. “Algumas das doenças diagnosticadas precocemente podem levar à morte ou provocar danos neurológicos irreversíveis se não forem tratadas a tempo”, afirma a hematologista Vitória Régia Pinheiro, coordenadora do Centro Integrado de Pesquisas Onco-Hematológicas na Infância da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Para a maioria dessas condições, é crítico que a assistência comece antes do primeiro mês do bebê.
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A fim de garantir a precisão do exame, os profissionais aguardam 48 horas após o parto para colher as amostras. “É depois desse período que o organismo passa a funcionar completamente sozinho”, justifica a bioquímica Sônia Hadachi, supervisora do Laboratório de Triagem Neonatal da Apae de São Paulo, instituição que permanece referência no assunto. Os especialistas consideram o intervalo entre o segundo e o quinto dia de vida a janela ideal para realizar a prova, que, vale esclarecer, serve como triagem. Ou seja, se há alguma alteração, a coleta é refeita e novos exames podem ser solicitados para fechar o diagnóstico. Em caso de uma alteração confirmada, o laboratório ou hospital deve convocar a família, que, a partir daí, receberá orientações, bem como o acompanhamento e o tratamento pertinente à criança.
Os próximos passos
A inclusão mais recente de novos transtornos na versão gratuita do teste ocorreu em 2013, quando se passou a investigar também a hiperplasia adrenal congênita e a deficiência de biotinidase. A tecnologia atual permite que outras dezenas de mazelas genéticas sejam rastreadas, desde que se pague por isso – a modalidade mais completa do exame, só disponível no modelo particular, caça 48 problemas. “É que o programa público privilegia as doenças mais prevalentes na população”, explica a endocrinologista Tania Bachega, da Universidade de São Paulo (USP).
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Mais importante que ampliar o rol de distúrbios do procedimento é assegurar que ele chegue a 100% das maternidades do país. Embora o governo tenha instituído o programa nacional de triagem neonatal em 2001, estima-se que 16% das crianças ainda não passam pela prova ao nascer. “Os próximos esforços devem contemplar maior rapidez na coleta e a conscientização tanto da população quanto dos profissionais de saúde”, avalia Tania. A causa é nobre e o destino de muitos brasileirinhos por vir já agradece.
Detecção mais certeira em doença grave
Um em cada 10 mil bebês nasce com hiperplasia adrenal congênita, mal que bagunça a produção de alguns hormônios e, na sua forma mais grave, pode causar morte em até 15 dias depois do parto. Felizmente, há tratamento, só que ele tem de começar cedo. O problema é que o teste do pezinho apresentava um alto índice de resultados falsos positivos – ou seja, o laudo sugere a doença, mas a criança não é portadora. De olho nisso, um grupo liderado pela professora Tania Bachega, da USP, conseguiu refinar os parâmetros da triagem e propor um novo método para confirmar o diagnóstico. Assim, a taxa de falsos positivos caiu de 1% para 0,2%. Pelo pioneirismo, o trabalho ganhou um dos troféus do Prêmio SAÚDE 2015.
Um exame, quatro versões
Conheça os tipos de teste do pezinho disponíveis hoje
BÁSICO: É gratuito, fornecido pelo SUS e obrigatório por lei. Identifica seis distúrbios genéticos, como anemia falciforme e fenilcetonúria.
MAIS: Acrescenta quatro doenças à lista, caso da toxoplasmose congênita. A exemplo dos próximos, só está disponível na rede particular.
SUPER: Utiliza uma tecnologia mais avançada para investigar a presença de 48 condições. É considerada a versão mais completa hoje.
SCID/AGAMA: Mais recente, procura síndromes que abalam a imunidade. Pode ser associado aos outros ou requisitado isoladamente.
2 489 894 bebês brasileiros foram submetidos à triagem neonatal em 2015. Isso corresponde a 83,57% das crianças nascidas vivas no país. Desse contingente, 3 592 pequenos foram diagnosticados com uma das seis doenças rastreadas pelo teste do pezinho básico, oferecido pelo SUS.