“Nascemos brincando e não podemos perder essa habilidade”
À frente de um projeto educativo que impacta milhares de crianças, a educadora e atriz Cláudia Diogo Pereira fala sobre a importância de brincar
“Brincar está na essência humana”, defende a educadora Cláudia Diogo Pereira. Formada em artes cênicas, ele se tornou especialista em jogos e brincadeiras, após passar décadas atuando com o tema em São Paulo.
Além de se dedicar à pesquisa da ludicidade, Cláudia também já atuou como consultora técnica do Guia de Jogos e Brinquedos da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq) e coordenou diversas brinquedotecas públicas.
À VEJA SAÚDE, Cláudia fala sobre a importância das brincadeiras para o desenvolvimento das crianças e para o bem-estar dos adultos. Sim, elas fazem bem em outras idades também.
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VEJA SAÚDE: Como as brincadeiras beneficiam o desenvolvimento infantil?
Cláudia Pereira: A linguagem da criança é a brincadeira. É como ela se expressa e entende o mundo. Tudo que envolve o lúdico faz parte do universo dos pequenos: as contações de histórias, as artes — como o teatro, a pintura, o desenho, a música — e os jogos.
Além disso, brincar leva ao desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e social. Ou seja, ajuda integralmente as crianças. Por exemplo, estudos apontam que brincadeiras que envolvem atividades sensoriais e resolução de problemas estimulam a plasticidade cerebral.
Quanto mais brincadeiras a gente puder oferecer, melhor.
Uma pesquisa recente mostrou, inclusive, que jogos de tabuleiro aumentam a habilidade matemática das crianças. Como essas experiências podem ser usadas para melhorar o aprendizado?
Toda aprendizagem é mais significativa quando faz parte do nosso dia a dia. Com a matemática não é diferente. Para uma criança, pode ser difícil ver que essa ciência está concretamente presente no seu cotidiano.
É aí que entra a brincadeira: ela ajuda a pensar e a imaginar matematicamente. Jogos estimulam a criação de habilidades que vão desde o reconhecimento dos números e a contagem até a realização de operações matemáticas e resolução de problemas.
E isso é feito de forma leve, divertida e significativa, mesmo que envolva esforço, determinação, foco e concentração por parte dos participantes.
Não à toa, na Europa, muitas escolas têm tantos jogos de tabuleiros quanto livros em seus acervos. São um recurso extremamente educativo.
As brincadeiras são também uma boa justificativa para socializar, não?
Com certeza! É, inclusive, uma oportunidade de reunir diferentes gerações, para que pais e filhos tenham um momento juntos e fortaleçam vínculos.
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Alguns adultos não se sentem à vontade para voltar a brincar e acabam estimulando os filhos a praticarem atividades mais solitárias, como jogos digitais. Mas o uso de telas, caso não seja bem monitorado, pode atrapalhar a construção de relações.
Além disso, muitas vezes as famílias buscam formas de interagir com as crianças e não sabem que, a partir de um jogo de tabuleiro, por exemplo, não apenas as crianças, mas os adultos também vão se divertir muito.
Como pesquisadora do tema, você diria que há espaço para brincadeiras na vida adulta?
Quando entramos no mundo adulto, vamos perdendo um pouco da nossa espontaneidade, da nossa criatividade, do nosso jogo de cintura. E a brincadeira nos traz de volta a isso tudo.
Para o historiador Johan Huizinga, os jogos são o berço da civilização.
Segundo ele, nós, os Homo sapiens, somos Homo ludens antes de tudo. Ou seja, sabemos encarar a vida de forma lúdica, criativa e experimental. Mas, com o tempo, nos tornamos Homo faber, seres produtivos e mais disciplinados.
A boa notícia é que, enquanto H. sapiens, podemos transitar entre esses dois mundos — e é importante, inclusive para o nosso lado “faber”, que não percamos de vista o instinto lúdico que nos é natural.
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[O pensador suíço] Jean Piaget também defendeu a brincadeira como um dos pilares da humanidade. Como biólogo, ele ressaltava que até mesmo os animais tem esse ímpeto natural de brincar.
A verdade é que a gente vai deixando isso de lado porque nos foi ensinado que brincar é algo sem importância.
Em tempos de crescimento do estresse e de transtornos mentais, como trazer brincadeiras para o nosso dia a dia pode melhorar o bem-estar mental e interpessoal?
Brincar está na essência humana. Para quem se esqueceu disso, há até instituições que propõem treinamentos para que os adultos voltem a se divertir e ser criativos.
Todo ser humano nasceu brincando e nós não podemos perder essa habilidade, porque, a partir dela, desenvolvemos várias outras.
Uma delas é saber mergulhar em si, isto é, ter autocuidado e equilíbrio emocional. Outra é a voz ativa: expressar o que você sente com clareza, saber argumentar e ter uma escuta empática.
Desenvolver inteligência interpessoal e saber trabalhar em grupo é outro ponto essencial trazido pela ludicidade. Quando brincamos, colaboramos para um propósito coletivo, entendemos o mundo e agimos conscientemente sobre ele.
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Em suma, termos todas essas competências desenvolvidas ajuda a prosperar nesse mundo em rápida transformação, como indivíduos e como comunidades.
E tudo isso é construído de forma mais prazerosa e orgânica com jogos e brincadeiras, trazendo mais equilíbrio ao dia a dia.