Imagine uma situação na qual você até cria a palavra na sua cabeça, mas simplesmente não tem capacidade de verbalizá-la direito por uma falta de coordenação dos movimentos da boca. É mais ou menos isso que uma criança com a chamada apraxia de fala sente. Não conhece a condição? Pois fique sabendo que até profissionais de saúde ignoram o problema. Uma pena — se não for contornado, ele chega a atrasar o desenvolvimento infantil.
Até para chamar atenção para esse quadro e melhorar o atendimento aos pacientes mirins, está acontecendo hoje (19 de novembro) a 2ª Conferência Nacional de Apraxia de Fala na Infância. Uma das palestrantes, a fonoaudióloga Elisabete Giusti, dá uma noção de sua incidência entre os pequenos. “Não há dados confiáveis no Brasil, mas, nos Estados Unidos, de 7 a 10% das crianças em idade pré-escolar têm algum problema de desenvolvimento de linguagem. Entre elas, 5% apresenta apraxia da fala”, afirma a expert, consultora técnica da Associação Brasileira de Apraxia de Fala na Infância. Trocando em miúdos, de 3 a 5 crianças a cada mil vão sofrer com essa encrenca.
Irritabilidade
Isolamento social
Dificuldade até dos pais em compreender o que está sendo dito, principalmente após os 2 anos
Falta de resposta ao tratamento fonoaudiológico convencional
Em vez de falar a palavra toda, só expressa suas vogais ou uma sílaba
Elisabete ressalta que todo atraso na fala merece uma investigação. Porém, a apraxia está entre os quadros mais desafiadores por ser resultado de uma alteração no funcionamento dos neurônios que coordenam os gestos da boca. Ou seja, não é uma questão de falta de estímulo — o que ocorre quando os familiares conversam pouco com o pequeno ou o deixam o tempo todo olhando para uma tela de tablet — ou de uma limitação física, a exemplo da língua presa. Acima disso, ela demora a ser diagnosticada porque os próprios pais a deixam passar batido por desconhecimento. “É comum ouvirmos que uma hora a criança vai pegar o jeito e sair falando. No caso da apraxia, sem tratamento é pouco provável que isso ocorra”, lamenta.
As causas por trás desse quadro ainda são nebulosas. Na maioria das vezes, ele não é atribuído a nenhuma disfunção (embora esteja associado a autismo e síndromes genéticas, como a de Down). Tanto que não costuma ser flagrado em exames que avaliam o interior da cabeça dos meninos e das meninas. “O diagnóstico é realizado no consultório, analisando os sintomas e o estado da criança”, ensina Elisabete. Antes dos 3 anos de idade, não dá para cravar a presença da apraxia, porque os testes feitos por um fonoaudiólogo dependem de certa maturidade dos pacientes. Mesmo assim, já é possível suspeitar do problema e direcionar o tratamento.
Segundo Elisabete, pegar esse distúrbio nos seus primeiros passos melhora demais a resposta da garotada à terapia fonoaudiológica. Em casos leves, tais técnicas chegam a reverter completamente a dificuldade, se aplicadas desde os primeiros anos de vida. Para isso, convém conversar sobre o assunto com o pediatra, principalmente se o seu filho apresentar algum sinal suspeito, e marcar uma consultar com um fonoaudiólogo. Também vale ficar atento a marcos do desenvolvimento da fala. Confira alguns:
• Por volta de cinco meses, o bebê começa a balbuciar sons para se expressar.
• Ao atingir 1 ano de idade, emite uma ou outra palavra que pode ser compreendida por um adulto.
• Quando tem, em média, 1 ano e meio, ele já consegue combinar duas palavras.
• Ao completar 2 anos, fala pequenas frases que podem ser compreendidas.
• Com 3 anos, 60% da linguagem está formada.
Se a criança não parece evoluir e nada é feito, o próprio desenvolvimento cognitivo é ameaçado. Isso porque a dificuldade de se expressar acaba limitando as interações sociais e dificultando o aprendizado em casa e na sala de aula. De novo: buscar apoio de um fonoaudiólogo não oferece mal algum. Pelo contrário: pode trazer enormes benefícios.
O tratamento
Já adiantamos: não há pílula ou cirurgia mágica. “Por outro lado, os métodos que temos progrediram muito e trazem melhorias mesmo nas situações graves”, garante Elisabete. As sessões de fonoaudiologia voltadas para a apraxia são individualizadas. Contudo, em geral elas exigem mais repetições e um avanço gradual. No início, é como se o profissional fizesse o papel que está sendo mal desempenhado pelo cérebro. “Nós mostramos como mexer a boca, a língua e outras estruturas para a criança conseguir planejar os gestos que formarão uma sílaba ou palavra”. Às vezes, o expert chega a apertar com os dedos regiões específicas da cavidade bucal para ajudar o paciente. De pouco em pouco, ele vai aprendendo o que fazer e ganhando autonomia.
Acima disso, é fundamental que o especialista se dê bem com o pequeno, até porque esses momentos, se não forem recheados de carinho e diversão, entediam a causam rejeição. “Os pais também devem entrar em cena e estimular o filho a realizar certos treinamentos em casa”, completa Elisabete.
Algumas crianças apresentam uma apraxia global, que envolve dificuldades para movimentar outros músculos do corpo. Além de não conseguirem falar direito, elas sofrem para segurar talheres, mastigar, manusear um lápis ou mesmo brinquedos… Se notar que seu filho está significativamente mais atrasado com relação a meninos e meninas de sua idade, vale bater um papo com profissionais especializados.