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O mundo também é dos vírus. E o virologista e especialista em coronavírus Paulo Eduardo Brandão, professor da Universidade de São Paulo (USP), guia nosso olhar sobre esses e outros micróbios que circulam por aí.
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Aquecimento global pode “despertar” vírus capazes de causar doenças

Basta a temperatura subir um pouco para o gelo derreter e liberar microrganismos que, até então, estavam congelados. Nosso colunista explica o perigo disso

Por Paulo Eduardo Brandão
3 fev 2023, 11h19
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  • Os Inuit são povos originários do Ártico, uma região ao redor do Hemisfério Norte que inclui o Alasca (pertencente aos Estados Unidos), o Canadá, a Groelândia (da Dinamarca), a Islândia e a Rússia. Nessa área, a temperatura mais alta do ano não passa de 10 ºC. Ao longo de milênios, os Inuit desenvolveram uma relação de respeito à natureza inóspita encontrada ali, da qual derivam uma cultura viva e uma exuberante mitologia.

    Por exemplo: para os Inuit, “Qallupilluk” são seres mitológicos que vivem no oceano e que se escondem no gelo para, de surpresa, capturar pessoas – diz-se que um sinal de sua presença são rachaduras no gelo.

    Só que o Ártico vem encolhendo 13% a cada década! E isso se deve ao aquecimento global, que, ao contrário do que muitos pensam, não é parte de nenhuma mitologia.

    Desde a Revolução Industrial até hoje, a temperatura na Terra já subiu mais de 1º C. Parece pouco, mas é o suficiente para que mais gelo derreta e que, assim, o nível do oceano vá subindo. Além disso, a temperatura das águas aumenta e as correntes marítimas se alteram. Isso tudo afeta o clima globalmente e, claro, altera o equilíbrio entre os seres vivos – incluindo as gigantescas baleias azuis, os seres humanos e até os microrganismos, como os vírus.

    + Leia também: Afinal, do que estamos falando quando falamos de uma virose? 

    Quando congelados, vírus ficam dormentes por anos. Mas… quantos anos exatamente? Uma pesquisa feita com terras congeladas da Sibéria, na Rússia, encontrou um vírus datado de 30.000 anos! Chamado de Pithovirus sibericum, esse vírus infecta amebas e, nelas, vive muito bem. Inclusive, quando “despertado”, foi exatamente o que fez: infectou amebas frescas que os pesquisadores colocaram à sua disposição.

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    No solo congelado do Ártico, escondem-se vírus que infectam animais, plantas e fungos. Eles estão preservados fora das células hospedeiras – mas só enquanto o gelo não se quebrar ou o solo não descongelar. Se as coisas esquentarem, a sopa viral que se forma começa a ser carregada pelas águas de degelo para locais distantes.

    Dessa maneira, pode, quem sabe, encontrar uma planta, um animal selvagem, uma fazenda de porcos ou uma pessoa e, daí, os vírus recém-despertados estão prontos para começar novos ciclos de infecção.

    O resultado desse processo pode ser a ocorrência de problemas já conhecidos e/ou também doenças que nunca vimos – ou, quem sabe, que foram só testemunhadas por nossos ancestrais há milhares de anos.

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    Para complicar, vamos colocar mais uma questão: já vimos que carcaças de lobos, ursos e mamutes com milhares de anos são encontradas no solo ainda congelado da Sibéria, na Rússia. E se o aquecimento global começar agora a expor com mais frequência essas carcaças, que certamente contém vírus? E se esse vírus acordarem e passarem para cães, gatos, bois, porcos, aves, pessoas, ratos e o que mais estiver disponível?

    + Leia também: Vírus sincicial respiratório: cuidado, ele é de tirar o fôlego!

    É claro que não basta só um vírus sair do gelo para causar uma pandemia. Ele tem que, primeiro, ser capaz de se agarrar na membrana da célula, entrar por ela, criar sua prole e sair da célula para infectar outras. Mas já vimos essa adaptação viral acontecer, mesmo que não tenha partido de um desses vírus congelados. Não tem exemplo mais ilustrativo e atual do que a Covid-19. Os vírus sempre dão um jeito!

    Acordar um desses vírus pode ser desastroso também para a criação de animais, como bois, galinhas e porcos. Espécies silvestres são igualmente ameaçadas – aqui, é importante destacar os insetos polinizadores, como as abelhas, cuja ausência levaria a uma catastrófica reação em cadeia de extinções. É como se uma borboleta batendo as asas nas Sibéria fosse capaz de causar uma furação no Caribe.

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    Cabe lembrar ainda que vírus de plantas não ficam atrás: e se uma folha, um galho de árvore ou uma semente congelada há milhares de anos for descongelada e libertar um vírus letal para florestas ou para a agricultura?

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    E tem mais: a mudança climática que nós estamos ajudando a acelerar faz com que animais selvagens migrem em busca de áreas mais amenas e, com isso, carreguem seus vírus para novos locais, além de favorecer a reprodução de mosquitos que transmitem doenças. Como se vê, há muitas possibilidades em jogo.

    Negar que a velocidade do aquecimento global é consequência da ação humana é como enxugar gelo. Só que, dentro dele, algo está só esperando uma oportunidade para nos pegar, assim como na mitologia Inuit – e, como esse povo diz, só conseguiremos distinguir nossos amigos dos amigos quando o gelo se quebrar.

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