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O repórter André Biernath desenterra o passado e vislumbra o futuro da arte (e da ciência) da Medicina
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O que o carnaval nos ensina sobre o parto humanizado

No país vice-campeão de cesáreas e com alta taxa de violência obstétrica, o samba vira ferramenta para mudar a realidade

Por André Biernath
Atualizado em 1 mar 2019, 18h48 - Publicado em 1 mar 2019, 18h13
bloco de rua parto humanizado
O estandarte do Cordão da Dona Micaela, na frente da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (Foto:Douglas de Campos/Divulgação)
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Caminhar pelas ladeiras e vielas da Penha, na Zona Leste de São Paulo, é fazer uma volta ao passado. Segundo bairro mais antigo da cidade (só atrás de Santo Amaro, na Zona Sul), foi nesse cantinho da capital paulista que aconteceram importantes marcos da história do Brasil. Sua primeira paróquia, ainda de pé, foi construída no ano de 1667. Dom Pedro I dormiu em um dos casarões da vizinhança antes de dar o famoso grito da independência, em 1822. O governador Carlos de Campos precisou se refugiar na antiga estação de trem local para se defender durante a Revolução de 1924.

Mais que a história oficial dos livros escolares, o que realmente me fascina na Penha são seus personagens quase anônimos e movimentos populares que ajudaram a construir o que o bairro é hoje. A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, por exemplo, é a única edificação construída por negros no século 19 que continua intacta e em seu lugar original no país. O local até hoje recebe missas afro-brasileiras e segue como um importante polo de encontro e de manifestação cultural da cidade.

E é justamente no Largo do Rosário, a praça onde está localizada essa igreja, que saiu no último domingo, dia 27 de fevereiro, o Cordão da Dona Micaela, um bloco de carnaval que faz uma justa homenagem a uma dessas personagens ocultas da Penha.

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A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, construída em 1802 (Foto: Wikimedia Commons/Divulgação)

Dona Micaela Vieira era uma parteira negra que nasceu no século 19. Uma das figuras mais populares da região, ela saia de carro de bois para ajudar as gestantes durante o trabalho de parto e, provavelmente, foi a primeira pessoa a ver (e pegar no colo) muitos dos penhenses nascidos no século 19 e início do século 20.

Dona Micaela também dá nome a uma praça logo no início da Avenida Amador Bueno da Veiga, uma das vias mais importantes do bairro. Aliás, foi a partir da curiosidade de saber quem foi ela que surgiu a ideia de criar o cordão carnavalesco.

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“Começamos a levantar informações, mas não encontramos muitos registros. Sabemos que ela era influente e tinha atuação destacada numa época em que as mulheres sempre apareciam atreladas a uma figura masculina, como o pai ou o esposo”, conta a historiadora e produtora Patrícia Freire de Almeida, do Movimento Cultural Penha.

A festa começa com a atuação de Edi Cardoso, atriz, fisioterapeuta e doula do Ayê-Coletiva. Ela tem a missão de representar Dona Micaela e dar à luz ao estandarte do cordão numa encenação cheia de simbolismos.

“Nossa ideia é exaltar esses saberes ancestrais das parteiras, das benzedeiras e das curandeiras que, infelizmente, não são valorizados e estão se perdendo com o tempo”, diz Edi. O cordão possui músicas próprias que exaltam justamente essas questões e trazem à tona o papel da mulher no nascimento de seus filhos e de outras crianças.

Existe hora pra nascer?

Mas o bloco penhense não se limita aos sambas e cantorias. Ao resgatar o passado de Dona Micaela, seus integrantes conseguiram jogar luz sobre um assunto muito relevante no momento atual: o parto humanizado. Eles chegaram a ser convidados para uma apresentação especial num evento do curso de obstetrícia da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), também sediada na Zona Leste.

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Desse primeiro contato, surgiu a possibilidade de uma parceria para que o tema fosse discutido utilizando justamente essa relação entre ciência, medicina e arte. 

Já passou da hora de encararmos e discutirmos a forma como os brasileiros nascem . Poxa, somos o segundo país que mais realiza partos cesarianos no planeta — só perdemos para a República Dominicana. Por aqui, 57% dos bebês chegam ao mundo dessa maneira. A Organização Mundial da Saúde preconiza que apenas 15% dos partos sejam cesáreas.

Uma das participantes do cordão em 2019
Uma das participantes do cordão em 2019 (Foto: Douglas de Campos/)

Na ausência de ameaças para a vida da gestante ou do bebê, não há motivo para passar por um procedimento cirúrgico deste tipo. O melhor caminho é esperar a bolsa estourar e o bebê sair pela vagina.

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Não existe data e hora marcada para vir ao mundo: o parto normal está relacionado a um bom peso no nascimento e a uma melhor maturidade do cérebro e dos pulmões, além de menor risco de alergias e infecções.

Mas o que faz a cesariana ser tão popular por aqui? “Por questões econômicas e sociais, vivemos num sistema de nascimento centrado no hospital e na medicalização do corpo. Não precisa ser assim”, analisa a doula e estudante de obstetrícia Gabriela Barbosa, da EACH-USP, uma das responsáveis por fazer a interface entre a universidade e o cordão Dona Micaela.

Traumas para toda a vida

E olha que o cenário piora: um estudo da Fundação Perseu Abramo revela que 25% das mulheres brasileiras sofreram algum tipo de violência obstétrica na hora do parto em instituições públicas ou privadas. Isso significa que elas passaram por abusos psicológicos, como xingamentos, ofensas e recusa de atendimento, ou físicos, como procedimentos e intervenções desnecessários.

“Existe, por exemplo, uma técnica de empurrar com força a barriga da gestante durante o parto que é totalmente contraindicada pelo Ministério da Saúde, mas que continua sendo praticada por aí”, informa Gabriela. 

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As gestantes têm, por lei, direito a levar um acompanhante para a sala de parto. Essa pessoa, geralmente algum familiar, dá o suporte emocional necessário nesse momento. Além disso, sua presença inibe um pouco as eventuais grosserias e agressões.

Em seu segundo ano, o cordão da Dona Micaela reuniu 250 foliões
Em seu segundo ano, o cordão da Dona Micaela reuniu 250 foliões (Foto: Douglas de Campos/Divulgação)

Segundo Edi, o problema da violência obstétrica é ainda mais sério nos bairros afastados e nos lugares com pouca infraestrutura de saúde. “As mulheres negras da periferia são aquelas que mais sofrem com esse cenário. Precisamos que o assunto seja cada vez mais discutido como uma pauta ampla para que tenhamos alguma mudança efetiva”, declara.

Para modificar esse cenário terrível e oculto, o jeito é arregaçar as mangas, botar o bloco na rua e seguir com o Cordão de Dona Micaela vivo e atuante — dentro e fora do carnaval. Afinal, as festas populares sempre foram palco de debate, já desfizeram tabus e conquistaram avanços relevantes. É a mudança que vem do povo para o próprio povo. As mulheres e seus bebês merecem mais respeito, cuidado e atenção.

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