O dia 11 de novembro de 2023 ficará marcado como um dia histórico na medicina. Pela primeira vez, um medicamento antiobesidade promoveu redução de risco cardiovascular em indivíduos em tratamento contra sobrepeso e obesidade.
Trata-se da semaglutida, um remédio injetável que tem feito sucesso nos estudos e já havia demonstrado efeitos protetores ao coração.
O curioso é que, tempos atrás, muitos médicos, cientistas e a sociedade em geral tinham receio, com alguma razão, do uso de medicamentos antiobesidade devido aos seus potenciais efeitos colaterais cardíacos.
Mas esta página virou definitivamente com o estudo SELECT, apresentado no Congresso da Associação Americana de Cardiologia, na Filadélfia.
Trata-se de uma das maiores pesquisas com pessoas com obesidade e sobrepeso, envolvendo mais de 17 mil indivíduos que já tinham tido infarto, acidente vascular cerebral (AVC) ou entupimento das artérias das pernas.
A idade média dos voluntários era de 61 anos e o índice de massa corporal (IMC) de 33 Kg/m2. Vale destacar que a maioria tinha “apenas” sobrepeso ou obesidade grau I.
E, de maneira geral, todos vinham com excelente controle da pressão, colesterol e triglicérides, assim como dos demais fatores de risco cardiovasculares. Não havia pessoas com diabetes no estudo.
Metade do grupo usou uma dose semanal de 2,4mg de semaglutida subcutânea e outra metade recebeu injeções de placebo.
Em menos de 3 anos de acompanhamento, aqueles que utilizaram a semaglutida apresentaram uma redução de 20% no risco de terem um novo infarto, derrame ou morrrerem de causas cardíacas. Simplesmente um marco. E nada de evidências de efeitos colaterais graves.
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Mas e o peso? A parcela da turma que utilizou semaglutida perdeu cerca de 10% do peso corporal durante o acompanhamento de cerca de 3 anos, ao passo que o grupo placebo apresentou redução de apenas 1%.
É bom pontuar que o grupo placebo recebeu educação alimentar e foi estimulado à prática de exercícios físicos, de forma muitas vezes melhor do que costuma ocorrer nos consultórios médicos.
Os efeitos da semaglutida na saúde cardiovascular
O fato intrigante foi que os benefícios cardiovasculares começaram a surgir menos de 6 meses após o início do estudo. Ou seja, antes mesmo de uma perda de peso expressiva.
Além disso, a análise estatística mostrou que pessoas com IMC menor do que 30 kg/m2 obtiveram as mesmas vantagens.
Durante o seguimento da pesquisa, houve em paralelo melhora da pressão arterial, colesterol, triglicérides e inflamação entre os que usaram semaglutida.
De olho no cardiometabolismo
Por tudo isso, o estudo SELECT é um marco não apenas científico. Ele é um instrumento a mais contra o estigma da obesidade, doença crônica e multifatorial, que pode trazer inúmeros malefícios.
Com os resultados, o manejo do ganho de peso deve passar a fazer ainda mais parte do dia-a-dia do médico cardiologista e do clínico geral (e não apenas do endocrinologista), pois agora temos evidências de que o uso de semaglutida 2.4mg semanal colabora na redução de riscos naqueles que já tiveram algum problema cardíaco prévio.
Não é à toa que cresce exponencialmente o conceito de cardiometabolismo.
Trata-se de uma área da medicina que interliga obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, gordura no fígado, pressão alta, colesterol e triglicérides alterados, apneia do sono, doença renal crônica etc.
Já há residências médicas e até congressos sobre este tema mundo afora e no Brasil.
Dúvidas a serem respondidas
Algumas questões persistem após este estudo.
Podemos extrapolar os achados do estudo SELECT para pessoas acima do peso que ainda não tiveram problemas cardíacos? Os efeitos se deveram à perda de peso ou a outras ações da molécula testada?
Por fim, os outros medicamentos antiobesidade com mecanismo de ação parecido, com potência até superior na redução de peso, como a tirzepatida, mostrarão tamanho benefício cardíaco?
Também precisamos entender melhor como se dará a chegada da semaglutida 2,4 mg ao país. Apesar de aprovada no Brasil, ainda não sabemos quando ela chegará nas farmácias e nem qual será o seu custo.
Na minha opinião, o grande desafio será o acesso a esta medicação e o engajamento ao seu uso no longo prazo, como acontece com qualquer doença crônica.
Enquanto isso, vamos celebrar a ciência e este novo marco da medicina moderna.