A pandemia do coronavírus surpreendeu a todos e já é um dos maiores desafios vivenciados pela nossa geração. Estamos há mais de 100 dias em nossas residências, tentando equilibrar as demandas sociais e de trabalho, os afazeres domésticos com as atividades laborais, a criação dos filhos, os estudos e o cuidado com aqueles que amamos. Muitos brasileiros ainda enfrentam os desafios diretos dessa crise de saúde, seja atendendo pessoas adoecidas, seja exercendo outras funções essenciais para a sociedade.
A situação fez com que, desde março, alertássemos para as implicações da pandemia na saúde mental da população. É o que chamamos de quarta onda de consequências da Covid-19. E ela já se formou.
A princípio, deparamos com o adoecimento e a mortalidade causados pelo coronavírus em si (a primeira onda). Em seguida, percebemos como a restrição de recursos e a reorganização do sistema afetam pessoas com outros problemas de saúde, que não conseguem ser atendidas em sua totalidade devido ao foco na Covid-19 (eis a segunda onda).
A terceira é aquela que visualizamos com a interrupção no tratamento de enfermidades crônicas, que exigem acompanhamento médico constante — caso de pacientes com câncer e doenças cardíacas e respiratórias.
Chegamos à quarta onda, mencionada pela primeira vez em um artigo que publicamos no Brazilian Journal of Psychiatry. Ela perpassa todas as anteriores e segue em crescimento, pois é formada pelo trauma psíquico, pelas doenças mentais e pelo desgaste da sociedade como um todo, inclusive pela crise econômica.
Ao chegar ao Brasil, a pandemia se soma a um cenário de desassistência pública em saúde mental, tornando a busca por soluções ainda mais árdua após 30 anos de políticas inadequadas nesse contexto. Os avanços em psiquiatria aplicados com sucesso no serviço privado não se comparam ao que é disponibilizado no atendimento público, configurando um obstáculo para o acompanhamento médico e a oferta de tratamento eficaz e equânime a boa parte da nossa população.
Muita gente ainda acredita que os cuidados com a saúde mental podem esperar, mas ignorar isso agora significa atravessar com mais dificuldade a pandemia e sofrer implicações no curto, no médio e no longo prazo. Precisamos considerar aqui não só a questão do tratamento mas também a prevenção de doenças como transtornos depressivos e por uso de substâncias (álcool e drogas).
Nesse sentido, ganham força iniciativas digitais baseadas em evidências científicas que serão lançadas para promover, por meio de videoaulas e cartilhas, orientação contra utilização de drogas, automutilação e suicídio, gravidez na adolescência etc.
Investir na prevenção e no diagnóstico precoce de doenças mentais é a melhor estratégia. O sistema ambulatorial compartilhado de atendimento, por exemplo, é uma alternativa rápida e barata a fim de garantir à população a assistência necessária — uma mesa e cadeiras são suficientes para que psiquiatra e psicólogo possam atuar.
Além do uso dos meios digitais, outra iniciativa que precisa ser estudada é a disponibilização de medicamentos psiquiátricos nas farmácias populares. Isso garante acesso e continuidade ao tratamento. É urgente nos prepararmos e agirmos pensando nos meses que virão. Entre tantas incertezas, não podemos negligenciar o cuidado com a saúde mental.
* Dr. Antonio Geraldo da Silva é presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria e da Associação Psiquiátrica da América Latina