Quer ser “mais saudável”? Cuidado com o que deseja!
Um especialista discute como uma mudança de percepção sobre a saúde e a própria vida podem promover hábitos balanceados, sem ansiedade ou frustração
Tenho atendido muitos pacientes com o desejo de ser “mais saudável”. Eles costumam começar nossa conversa ou sentindo-se orgulhosos porque se alimentam bem e fazem atividade física, ou culpados porque não fazem nem um, nem outro. Esperam de mim o tapinha nas costas de “Parabéns” ou o chicote intimidador do “Que vergonha…”.
Por isso, ficam meio intrigados quando recebo essas informações com um certo “dar de ombros”. Não me entendam mal: adotar hábitos saudáveis é muito importante. Mas tenho observado com alguma frequência pessoas absolutamente saudáveis avaliando a própria saúde como “péssima”. As razões são as mais diversas:
“Não fiz meus exames.”
“Não vou ao médico há muito tempo.”
“Não medito todos os dias.”
“Não corro uma maratona.”
“Estou com uma barriguinha.”
Parece que, para se sentir saudável, esse pessoal precisa de uma validação médica ou de um estilo de vida ultrafitness. Eu poderia acabar o texto aqui e simplesmente recomendar: “Relaxe um pouco. Confie mais em você. Não se cobre tanto. Seja feliz”.
Mas o leitor poderia dizer: “Veja só o médico da Sami, falando que ser saudável não é bom”. Então quero apresentar duas cenas opostas e, depois, uma linha de pesquisa muito intrigante:
Cena 1
Trafalgar Square, Londres, 2005, próximo ao Parlamento britânico. Local tipicamente repleto de estátuas de homens triunfantes. Eis que recebe uma escultura diferente: de uma mulher… e não qualquer mulher, mas uma mulher grávida, completamente nua, sem mãos, sem pernas e com um olhar altivo, orgulhoso e confiante.
Cena 2:
Mulher no topo da pirâmide do que socialmente se considera como belo se encontra com um charmoso cirurgião plástico. Eles flertam e dormem juntos. Na conversa da manhã seguinte, ela, que se atribuía uma nota 10 no quesito “estética”, é convencida de que não passa de um 8. No espelho, observa em seu corpo os rabiscos de batom feitos pelo cirurgião para indicar os locais que “precisariam” de procedimentos, e lamenta: “Eu sou assim tão feia?!”.
Na cena 1, temos o caso real da artista britânica Alison Lapper, que nasceu com focomelia, uma má formação congênita causada pelo medicamento talidomida. Quando criança, foi abandonada pela família e viveu num orfanato com outras pessoas afetadas pela mesma condição. Hoje, ela comenta que “Normal é se sentir confortável com seu corpo”.
Já a cena 2 é de uma série de TV chamada Nip/Tuck (ou “Estética”, nome que recebeu no Brasil). Sim, é uma situação fictícia, mas não causaria tanta surpresa se fosse real, certo?
O contraste entre esses dois mundos deve gerar discussões filosóficas riquíssimas. Mas algo me chamou atenção no orgulho de Alison Lapper em se sentir normal e saudável, mesmo com focomelia. Deve ter algo de muito positivo no simples pensar dessa forma.
Percepção subjetiva da saúde
Eis que, revirando a literatura científica, vi que existem estudos avaliando a percepção subjetiva de saúde. Ou seja, independentemente de quaisquer doenças que você tenha, como você percebe sua saúde? A pontuação pode variar entre 1 e 4, sendo:
1. Muito boa
2. Boa
3. Não tão boa
4. Ruim
Essa percepção é um grande preditora de como sua saúde realmente estará no futuro. Ela tem até uma relação com taxas de mortalidade!
Segundo um estudo norueguês de 2020, pessoas que avaliaram a própria saúde como “muito boa” morreram menos durante um intervalo de tempo específico. É óbvio, você poderia dizer: quem é realmente mais saudável tende se sentir mais saudável.
Mas o ponto crucial é que a relação entre uma percepção positiva da própria saúde e a menor taxa de mortalidade persistiu mesmo quando outras variáveis objetivas de saúde foram ajustadas.
Agora reflita comigo: como você acha que Alison Lapper avaliaria sua saúde? E a modelo do Nip/Tuck? Eu suspeito que ambas começariam ticando a opção “muito boa”. Porém, após aquela conversa com o cirurgião, a modelo mudaria de opinião.
Paradoxo da saúde
Apesar de termos avançado muito nas últimas décadas em longevidade, com melhores condições de vida e tecnologias diagnósticas e terapêuticas, a percepção da saúde das pessoas tem diminuído.
Qual a implicação prática disso? Viver pior e, eventualmente, menos. Tem quem dê risada de uma modelo que se sente feia, mas curiosamente replica o mesmo comportamento no que tange a nossa percepção de saúde.
Por essas e outras, eu venho trabalhando mais com a autoconfiança e autocompaixão dos meus pacientes. E tem sido ótimo. Isso evita a ansiedade provocada pelo médico “mascote da saúde”. É aquele que cobra X litros de água por dia, Y horas de sono, Z passos por dia — e faz o paciente sentir vergonha de retornar caso não tenha cumprido alguma meta pactuada.
Com essa ansiedade de lado, sobrou mais tempo para conhecer a pessoa que está na minha frente: o que gosta, com quem vive, com o que sonha… E aí acontece uma mágica. O paciente julgado a vida toda pelo peso, absolutamente desmotivado por não ter cumprido várias metas de saúde, retorna um certo dia comentando: “Estou pensando em retomar a atividade física, doutor. O que você acha?”.
* Alexandre Ceotto Calandrini é paraense com orgulho. Coordenador e médico do primeiro Time de Saúde da operadora Sami, é formado pela Universidade Federal de São Paulo e fez residência em Medicina de Família e Comunidade por São Bernardo do Campo (SP)