Demasiado humano: vida com altas habilidades tem seus percalços
Indivíduos superdotados podem contribuir para o desenvolvimento da sociedade, mas precisam de orientação adequada e de condições para florescer
No início do exercício da minha profissão de psiquiatra, acreditava que avaliar e quantificar a inteligência das pessoas era uma maneira de hierarquizar a humanidade, de criar apartheids biológicos.
Mais tarde, compreendi que reconhecer a capacidade cognitiva, o QI de alguém, revelava padrões de muitas outras características pulsantes de nossas existências: nossos afetos, nossos sentidos e sensibilidades, a maneira como interagimos conosco mesmos e com os outros.
A maior parte da população mundial apresenta um QI que gira em torno de 100. A média no Brasil é 83. Problemas sociais crônicos, insegurança alimentar, falta de saneamento básico e acesso à saúde, educação e cultura levam a essa diferença.
No mundo, a cada cem pessoas, duas destoam pela sua capacidade criativa e inventiva, com facilidade para surfar no próprio pensamento abstrato, aprender coisas novas e descobrir conceitos, reter informações diversas sobre campos de interesse variados, sem dificuldades, quase que espontaneamente.
Esse padrão do comportamento, presente em duas a cada cem pessoas, é o tipo de inteligência que se chamava de superdotação. Atualmente, preferimos usar o termo pessoa com altas habilidades. O QI dessas pessoas gira em torno de 130, embora uma pessoa possa apresentar altas habilidades sem necessariamente ter o QI nesse nível.
O que são altas habilidades?
São crianças que podem, muitas vezes, aprender a ler sozinhas. Durante toda a vida, darão demonstrações de autoaprendizagem. Não precisam saber de cor todas as respostas para qualquer coisa. Elas sabem, antes, como elaborar questões para melhor abordarem um problema.
Ainda crianças, essas pessoas causam perplexidade pela rapidez e destreza com que desenvolvem suas habilidades motoras de equilíbrio, controle fino dos movimentos, desenho e desenvoltura esportiva.
São independentes, autossuficientes e responsáveis na realização de suas tarefas, desenvolvendo um senso crítico e autocrítico bastante aguçado, balizador de suas ações, realizadas com esmero de quem pode se manter longamente, por muitas horas, concentrado.
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Por que algumas pessoas têm altas habilidades?
Pensar que uma pessoa carrega um “super dote” é imaginá-la cheia de adereços e coisas, vantagens materiais ou cognitivas, que poderiam significar uma vida abastada, fácil e cheia de bonança, porém, essas características não estão agregadas sobre essas pessoas como penduricalhos.
Somos fractais. A estruturação de nossas artérias, brônquios, neurônios, é fractal. Nossos pensamentos são fractais. Nossas inteligências são fractais. Não à toa usamos a expressão pensamento arborizado, para falar do modo como as ideias progridem nas nossas cabeças, como brotos de uma planta que cresce rápida e vigorosamente.
Pessoas com altas habilidades apresentam outro modo como esses fractais se intricam. Fotos com mais pixels? Tecido com mais trama? Volto a nos comparar às árvores. Cada pessoa, uma árvore. Teremos as diferenças entre elas. Jaboticabas, pitangas, ipês e jequitibás. Todas são árvores, cada qual à sua maneira.
E todas florescem, cada qual à sua maneira. Mas os ditos superdotados precisam de apoio e um ambiente adequado para atingirem seu pleno potencial.
Altas habilidades no Brasil
2% da população do Brasil representa 4 milhões de pessoas, porém o número de pessoas com altas habilidades reconhecidas e devidamente orientadas sobre sua própria condição é muito inferior.
Segundo a OMS, apenas 24 mil crianças brasileiras, pelo censo de 2020, de um universo de 2,3 milhões de crianças, receberam o reconhecimento e diagnóstico adequado. Ainda há um grande contingente de adultos a espera de um diagnóstico. Muitos talvez nunca o recebam.
Esse é um problema com repercussões importantes para a educação e para a saúde mental dessas populações. Mas não só: para a economia do país.
Pessoas com altas habilidades podem viver percursos escolares e profissionais caóticos, apesar da supercapacidade cognitiva, se não forem estimuladas e orientadas segundo suas necessidades especiais. Muitas também estão no espectro autista, com vivências de grande sofrimento mental devido à não consciência da própria condição.
Finalmente, para a economia do país, podemos apontar a fuga de cérebros. Aqueles que obtêm desempenho acadêmico notável, mas que, por falta de política de retenção e atração de talentos nas universidades, acabam se mudando para centros de pesquisa internacionais, onde são mais valorizados e reconhecidos.
Como calcular aquilo que não uma, mas milhões de pessoas com altas habilidades cognitivas, afetivas, criativas e esportivas, deixam de produzir para si e para a cultura e desenvolvimento do país?
Quem saberia a falta que essas pessoas, que vivem ainda à sombra, fazem em nossas vidas? Quando teremos um panorama completo de quem e quantos somos, além de um sistema de busca ativa, nacional, democrático, inclusivo e propulsionador de nossas potências? Quanto tempo até que deixemos de ser um país que vira as costas para sua população com altas habilidades?
*Alexandre Valverde é médico psiquiatra, neurodivergente e apresenta o podcast “Fractais”, que trata de temas ligados às neurodivergências.