Passamos por um ano que mudou completamente nossas vidas. Após cerca de nove meses de restrições e quarentenas no país, com aulas online, home office e crianças em casa por muito mais tempo, um ponto tem preocupado os pais: como andam a saúde e a alimentação dos pequenos?
Enfrentamos um momento ímpar, diferente de tudo aquilo que idealizamos e imaginávamos passar. É evidente que o cenário atual trouxe impactos. O isolamento social exigiu mudanças. Na era pré-Covid, por exemplo, a preocupação com o tempo de tela, o período gasto pelas crianças em frente a celulares e computadores, era algo comum entre os pais e seu uso se limitava a algumas horas.
Afinal de contas, sabe-se que, entre as repercussões do uso abusivo de aparelhos eletrônicos, estão a prática reduzida de exercícios físicos e prejuízos na qualidade do sono, aspectos que, combinados, aumentam o risco de obesidade.
Só que, com o isolamento social, as telas vêm sendo utilizadas mais frequentemente – muitas vezes, elas são o único meio de contato com crianças e familiares. Atualmente, ser criança perdeu parte do “seu encanto”: os pequenos não podem sair, não podem se encontrar com os amigos, não podem brincar no parque, não podem visitar os avós.
Essas proibições repercutiram substancialmente na saúde, já que estar saudável não significa não estar doente. Temos que entender a saúde em sua totalidade, incluindo os aspectos físicos, emocionais e sociais. A atenção à criança exige o compromisso de prover qualidade de vida, para que ela possa crescer e desenvolver todo seu potencial.
Em meu consultório, tenho notado pais apreensivos por diversas razões. Grande parte das queixas nas consultas são decorrentes da permissibilidade a esse novo estilo de vida. O uso em demasia das telas pode ocasionar mais dores de cabeça, distúrbios visuais (como ardência nos olhos, vista embaçada e dificuldades para ler) e dores nas costas.
Outra questão preocupante é o hábito alimentar dessas crianças. Em casa e ociosas, é comum descontarem o tédio e a ansiedade na comida. E a maioria dos pais trabalha em casa e frequentemente não tem tempo ou ajuda para elaborar um cardápio mais saudável. Em busca de praticidade, utilizam com regularidade comidas congeladas ou industrializadas de fácil preparo, ricas em gorduras.
Para que não engordemos, é fundamental a existência de um equilíbrio entre a ingestão e o gasto energético. No momento, temos crianças ingerindo mais calorias e realizando menos atividades físicas. Ou seja, um aumento na incidência da obesidade infantil já é algo esperado.
De acordo com um estudo desenvolvido na Itália e publicado pelo periódico Obesity, as crianças têm comido, em média, uma refeição a mais por dia, além de terem aumentado a ingestão de alimentos ultraprocessados como doces, bolachas recheadas e salgadinhos. Outras pesquisas realizadas ao longo da pandemia de coronavírus também apontam para uma tendência na piora da alimentação de modo geral e para o aumento de casos de obesidade infantil.
Sabemos que o momento é difícil, e pudemos notar a repercussão dessas mudanças abruptas na vida das crianças. Cada vez mais me deparo com pacientes que vêm enfrentando alterações de comportamento e humor, tristeza, medo, ansiedade, insônia, raiva e estresse.
Ampará-los emocionalmente é fundamental, assim como algumas ações diárias podem ajudar as crianças a retomar a rotina e os hábitos saudáveis de forma gradativa. Restringir a oferta de guloseimas é uma delas. Revisar a lista de compras da família é outra prioridade no momento: se não tiver doces e alimentos processados em casa, as crianças não comerão. Nesse sentido, investir em opções mais saudáveis, como bolos caseiros em alguns dias da semana, por exemplo, auxilia a tornar essa mudança menos impactante.
Outro ponto fundamental é estimular a atividade física. Para isso, é possível, mesmo dentro de casa, incentivar a criançada a gastar energia, através de treinos rápidos, de 5 a 15 minutos (pular corda, dançar…). Atenção aqui para a segurança do local, já que o intuito é se exercitar e não se acidentar. Outra alternativa é frequentar parques e locais abertos, em horários de menor movimento, para caminhadas e algumas atividades ao ar livre, sempre utilizando a proteção necessária.
Por fim, os pais devem passar mais tempo de qualidade com as crianças. Tivemos uma reviravolta em nossa rotina em 2020 e conciliar o trabalho com as atividades de casa tornou nossos dias bastante exaustivos. Porém, é preciso que cada um tente aproveitar o tempo livre para atividades em família, como jogos, rodas de conversa, brincadeiras e, até mesmo, aventuras na cozinha para descobrirem, juntos, novas receitas saudáveis.
É importante ressaltar, no entanto, que passamos meses nesse cenário e ainda temos outros pela frente. Não é possível determinar quanto tempo vai levar para as crianças recuperarem seus hábitos de anteriormente. Cada criança é única; cada família buscará se reorganizar para minimizar o impacto de hábitos alimentares ruins e exercícios físicos reduzidos.
O importante é entender que, além do risco de infecção pelo coronavírus, existem outras doenças que surgem como efeitos colaterais da pandemia. Conscientizar-se do risco de obesidade e iniciar mudanças em casa é um começo. Ousaria dizer que precisamos de conscientização, paciência, dedicação e persistência. Só assim, aos poucos, vamos conseguir readaptar as rotinas e os hábitos alimentares para conseguirmos, em algum momento, garantir o aspecto saudável da infância comprometida.
* Flávia Nassif é pediatra, médica do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, e parceira da Danone Nutricia, divisão de nutrição especializada da Danone