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Câncer sem tabu & com ciência

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O médico e CEO do A.C. Camargo Cancer Center, Victor Piana de Andrade, e outros experts da instituição desfazem os mitos e compartilham as descobertas e inovações na prevenção, no diagnóstico e no tratamento do câncer
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Doutor, como é mesmo o nome do meu câncer?

A palavra "câncer" ainda carrega um peso difícil de suportar. Mas entender o nome e o sobrenome da doença faz mais diferença que esse termo genérico

Por Victor Piana de Andrade
29 jun 2022, 10h31
ilustração de homem trabalhando em bancada de laboratório
Exames de laboratório modernos apontam nome e sobrenome genético do tumor.  (Ilustração: Veja Saúde/SAÚDE é Vital)
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O filósofo Aristóteles (384 a.C.-322 a.C) começou a classificar os seres vivos, dividindo as espécies em animais e plantas. Depois os animais foram divididos segundo o critério de onde viviam: terrestres, aéreos, aquáticos e anfíbios. Desde então, não paramos de subdividir as coisas e esse hábito nos ajuda a reconhecer, entender e tomar decisões.

Na medicina como um todo, e na oncologia e na patologia especificamente, cientistas ficaram famosos por classificar e subdividir tumores e reconhecer subgrupos da doença. Assim nasceram o sarcoma de Ewing, tumor de Klatskin, o tumor de Wilms…

Só de ler esses nomes, os especialistas atualizados já sabem muito sobre como eles se apresentam, em que idade os tumores são comuns, localização do corpo, sinais e sintomas, velocidade de crescimento, qual o benefício de usar este ou aquele tratamento, a sobrevida esperada etc.

Mas há exceções que se comportam diferente do esperado. Bem, nesses casos, os profissionais se reúnem, investigam, debatem e descobrem que, apesar das semelhanças, há neles algo de diferente. Pode ser uma mutação genética e o surgimento de um primo do tumor conhecido, mas com sobrenome diferente.

O papel das mutações isoladas ou combinadas nos tumores elas tem modificado a forma como classificamos o câncer. Descobrimos que essas modificações no DNA costumam ser a causa da doença, determinam o grau da agressividade dela, e podem influenciar o tratamento.

Agora os tumores têm nome e um ou mais sobrenomes, traduzindo seu perfil biológico e comportamento. Exemplos: “oligodendroglioma com mutação do gene IDH e codeleção 1p/19q” ou “tumor torácico indiferenciado deficiente para o gene SMARCA4”. Não é grego, mas significa um subtipo específico de tumor no cérebro e de pulmão, respectivamente.

As pesquisas do momento visam encontrar medicamentos inteligentes que anulem o efeito dessas mutações e drogas que se encaixam num esquema “chave-fechadura” nas alterações moleculares causadas pelas mutações. Como são muitas mutações, há muitos novos medicamentos e cada um deles pode ser empregado em situações bem específicas.

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(Re)classificação

A Organização Mundial da Saúde (OMS) publica os livros de referência para todos os oncologistas usarem a mesma nomenclatura e o grau de estadiamento dos tumores. A cada nova edição dos famosos Blue Books da OMS, revisitamos nomes, eliminamos subtipos que não fazem mais sentido e reconhecemos novos com base em critérios mais modernos.

São conhecidos oficialmente 45 tumores diferentes na tireoide, mais de 110 no sistema nervoso e mais de 80 subtipos de linfomas. O total passa de mil tumores com nomes oficiais.

São tantas informações atribuídas a cada um deles, como apresentação clínica, localização, comportamento, mutações, aspectos de imagem, macroscopia, microscopia e relação com hereditariedade, que fica difícil para qualquer oncologista sozinho dominar todos os tipos.

Não à toa, há uma língua própria entre os vários especialistas focados em cuidar de pacientes com um determinado tipo tumoral, por vezes mal compreendida pelos especialistas de outro tipo tumoral. E vice-versa.

E isso está provocando uma transformação importante na oncologia, porque os nomes e sobrenomes trazem consigo a personalização do cuidado, a informação sobre o prognóstico e a escolha do tratamento mais eficiente e com menos efeitos colaterais.

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Duas décadas atrás, um paciente que se apresentasse tossindo sangue em um consultório realizava um raio-X e, se o tumor fosse detectado, retirávamos o pulmão por cirurgia e o patologista analisava e laudava a amostra identificando se tratar de um carcinoma de pulmão, que poderia ser de pequenas células ou não pequenas células. O prognóstico variava de ruim a muito ruim com qualquer combinação de cirurgia, quimioterapia ou radioterapia.

Hoje, o raio-X foi substituído pela tomografia computadorizada, a cirurgia substituída por uma biópsia por agulha e o patologista recebe alguns pequenos fragmentos do tumor, aplica testes microscópicos e testes moleculares. Ao final, há dezenas de classificações possíveis para o diagnóstico.  As mutações podem acontecer em diversos genes ou até mesmo em regiões diferentes do mesmo gene e com significados diferentes. Numa localização X, significam que o tumor responde a uma droga específica e, numa localização Y, significam que não vale a pena tentar aquele medicamento.

O câncer de pulmão tem hoje muitos nomes, muitos sobrenomes e opções terapêuticas diferentes, com taxas de sucesso muito melhores. Depois de saber qual mutação o tumor contém, podemos monitorar sua presença através da biópsia liquidaque aponta fragmentos de DNA mutado circulando no sangue.

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Integração e personalização

A oncologia atual e praticada na fronteira do conhecimento é assim: requer especialistas para o diagnóstico e estadiamento da doença, técnicas modernas de laboratório, medicamentos inovadores… Agora, nada mais depende de um médico só; a concepção moderna é integrar para personalizar. Muito mais personalizado, muito melhor para o paciente, mas também muito mais caro para o sistema, numa equação difícil de resolver.

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Do outro lado, ao descobrirmos tumores de muito baixa agressividade, com crescimento tão indolente que não causam impacto na vida das pessoas, podemos apenas monitorar  (a viglância ativa) e evitar tratamentos agressivos. 

Isso acontece principalmente em pacientes acima dos 70 anos, com outras doenças coexistentes e quando o risco de uma cirurgia ou quimioterapia são mais sérios do que o câncer em si. Se encaixam aí alguns tumores da tireoide, da próstata, leucemias crônicas, entre outros.

Tudo depende da individualização, que é mais segura para o paciente e barata para o sistema. A OMS chegou a tirar a palavra “câncer” do nome de algumas condições porque elas não merecem despertar aquela ansiedade ao paciente tampouco afetam sua qualidade de vida.

Meu pai teve câncer de próstata aos 62 anos. Era um tumor de baixo risco, de lenta progressão, e decidimos na época fazer apenas radioterapia, porque a ciência mostrava que ela tinha sucesso equivalente à cirurgia com menos efeitos colaterais. Não valia a pena usar uma bala de canhão para matar um passarinho.

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Ele passou pelo tratamento sem reações adversas importantes e a vida seguiu. Passaram-se 18 anos até que o câncer voltou, algo constatado pelos exames de imagem e sangue. Parece ser o mesmo tipo de progressão lenta de quase duas décadas atrás.

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Só que agora, acima dos 80 anos de idade, meu pai tem um coração frágil, um pulmão que já não é o mesmo e o tratamento com hormonioterapia e outras combinações pode encurtar a vida dele pela toxicidade, coisa que o tumor não deve fazer. Decidimos não tratar.

Como é bom classificar, informar e decidir baseado na ciência! Para cada paciente oncológico, vale entender o nome, o sobrenome e os seus significados, porque câncer não é tudo igual. E acho que não vamos parar por aí.  Aristóteles não imaginava o que começou.

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