Até o segundo semestre de 2015, o zika era visto como uma dengue leve. E convenhamos que manchas vermelhas, febre e coceira, associadas a uma mortalidade baixíssima, não geram tanta preocupação. Já em fevereiro de 2016, o mesmo vírus foi tachado pela Organização Mundial da Saúde como o provável estopim de uma emergência internacional. Tudo por causa do aumento explosivo de mulheres que tiveram bebê com microcefalia e que manifestaram sinais da infecção na gravidez. “Fomos pegos de surpresa pela doença”, comenta o virologista Paolo Zanotto, coordenador da Rede Zika, força-tarefa entre instituições paulistas criada para estudar e combater o problema.
Nosso país está no centro da epidemia. Estimativas apontam que 1,5 milhão de brasileiros foram atingidos pelo zika e o Ministério da Saúde (MS) contabiliza, até 2 de abril, 6 906 notificações de microcefalia ou alterações no cérebro sugestivas de uma infecção congênita (1 046 confirmadas, 1 814 descartadas e 4 046 em investigação). Nenhuma outra nação apresenta números assim. “É sobretudo a comunidade científica brasileira que terá de trazer respostas para esse cenário”, avalia Zanotto. Respostas urgentes em um cenário que assusta a população.
Ver uma onda de recém-nascidos com deformações no crânio causa mesmo furor. Contudo, os profissionais alertam que essa pode ser somente a consequência mais escancarada do zika. Durante os atendimentos à população, profissionais observaram bebês com pernas tortas, danos oculares… Claro, são sintomas que merecem um olhar criterioso da ciência antes de serem atribuídos ao vírus. Por outro lado, indicam que a microcefalia seria parte de uma síndrome com várias possíveis consequências. “Temos de acompanhar os infectados por anos para identificar eventuais estragos que surgirem com o tempo”, explica Zanotto.
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Exemplo: ninguém sabe se o feto de uma gestante que caiu de cama por causa do zika, mesmo se nascer sem microcefalia, pode desenvolver deficiências cognitivas no futuro. “Só não devemos cair no desespero, porque não há indícios de que isso ocorra”, pondera o neuropediatra Paulo Breinis, da Faculdade de Medicina do ABC, na Grande São Paulo. “Muitas mães têm ligado para saber se crianças já nascidas sofreriam um atraso mental ao serem atacadas pelo zika. E não existe nada disso”, atesta. As decisões tomadas daqui pra frente (tanto as suas como as do setor público) precisam ser ancoradas por evidências e pela lógica — não por terror, oportunismo ou teorias da conspiração.
A falta de certezas sobre o assunto é compreensível se considerarmos que, um ano atrás, poucos desconfiavam que o zika estava por trás de repercussões graves. Acontece que um ambiente cheio de dúvidas dá margem a suposições absurdas. No início da pandemia de aids, muita gente atribuiu a disseminação do HIV a uma arma biológica. Mas, com o avanço do conhecimento, não deu mais pra negar que o vírus veio de macacos e se espalhou entre humanos por meio de relações sexuais desprotegidas e compartilhamento de materiais com sangue infectado. Mais de 30 anos depois, a história se repete com outro vírus e outra consequência da pesada, a microcefalia. Foram criados enredos sem nenhuma plausibilidade e que desviam a atenção da hipótese mais prudente: a de que esse agente infeccioso é capaz de chegar à cabeça do feto (carregado por um vetor que está no Brasil todo) e, lá, desencadear déficits neurológicos.
Com base no que temos, o foco de combate da população deve estar na contenção do mosquito e dos males que ele propaga. Os próximos meses e anos trarão novidades: um método de diagnóstico rápido, uma vacina… e muito conhecimento. Como conclui Zanotto: “As teorias da conspiração vivem no escuro. Como ocorreu com a aids, à medida que entendermos melhor o cenário atual, elas desaparecerão que nem vapor”.
1. O vínculo entre zika e microcefalia
Há quem peça calma antes de culpar o vírus pelos estragos nos pequenos. Porém, a hipótese se torna cada vez mais provável. Ora, o padrão do surto dessas disfunções neurológicas bate com o de uma doença espalhada por um mosquito — são focos locais que se propagam aos poucos. Mais: o bandido foi flagrado no líquido amniótico de grávidas e no cérebro de um feto com microcefalia. Ele arrombou a porta, entrou na casa e parou na cena do crime. Resta saber se apertou o gatilho. “Isso é página virada. O que precisamos descobrir é quantas das gestantes infectadas terão filhos com o problema”, opina Carlos de Brito, médico da Universidade Federal de Pernambuco que firmou a associação pela primeira vez.
O tamanho do impacto
Segundo Brito, a maioria das grávidas que pegaram zika não terá um bebê com microcefalia. “Mas é crucial descobrir a prevalência certa e os fatores de risco para vermos a abrangência do problema.” Experts vêm acompanhando várias dessas mulheres e devem ter uma resposta nos próximos meses.
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2. A síndrome do zika
A microcefalia surge por vários fatores, como uso de drogas na gravidez, desnutrição e até rubéola. Cada uma dessas ameaças traz particularidades ao quadro. “Só que, no contexto do zika, ainda não se identificou um padrão claro de sintomas”, avisa a neuropediatra Silvana Frizzo, do Hospital Infantil Sabará (SP). Até agora, parece que esse agente está associado a deficiências mais severas. O oftalmologista Rubens Belfort Junior, presidente do Instituto Paulista de Visão, conduziu um estudo com bebês afetados e concluiu que cerca de 70% exibiam lesões oculares graves. Dificuldades de deglutição e deformações osteomusculares também foram relatadas. Por essas e outras, pede-se para tratar o zika como deflagrador de uma síndrome que iria além de um crânio pequeno.
3. O tempo da infecção
Boa parcela dos médicos acredita que a microcefalia vai acarretar maiores transtornos se a futura mãe for picada pelo Aedes aegypti no primeiro trimestre — pelo menos é isso que costuma acontecer em outras infecções congênitas. Mas a gravidade também dependeria do estado do sistema imune da mulher, da carga viral à qual foi exposta, da quantidade de zika que passa pela placenta…
4. A polêmica do aborto
A Organização das Nações Unidas defende que países atingidos pela epidemia autorizem a interrupção da gestação. Entretanto, há quem creia que isso contribui para o estigma sobre os deficientes mentais. A advogada Sinara Gumieri, da Associação Nacional pela Inclusão Social, discorda: “Não dá pra confundir o direito de a mulher decidir se vai ou não seguir com uma gravidez de risco e que pode abalar seu estado psicológico com qualquer preconceito”. Essa ONG prepara uma ação para garantir acesso à informação sobre o zika (que inclui exames), legalização do aborto em caso de infecção e amparo para mães e bebês.
Quando é permitido
Na lei do Brasil, o aborto só é liberado em três situações: estupro, anencefalia fetal e risco de morte à mãe.
5. A transmissão pela saliva
No dia 5 de fevereiro, a Fundação Oswaldo Cruz anunciou que encontrou o zika ativo em amostras de saliva e urina. Os jornalistas foram à loucura. “Mas isso ainda não comprova sua disseminação por meio de beijos, espirros e compartilhamento de copos”, acalmou Paulo Gadelha, presidente da instituição, no evento. Entenda: não sabemos se o vírus, mesmo se viajar de uma pessoa a outra por gotículas de baba, sobreviveria no organismo até acessar o sangue. E é improvável que isso ocorra em larga escala.
Por outros caminhos
Foram relatadas raras transmissões por via sexual e transfusão sanguínea. “O grande vetor é o mosquito”, declara o infectologista Kleber Luz, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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6. A incessante luta contra o aedes
O mosquito não habita só áreas pobres. Fora o Brasil, ele se alastrou por partes de Austrália, EUA e outra centena de países. “O clima quente e a urbanização favorecem sua reprodução. É praticamente impossível erradicá-lo nessas condições”, avisa Rodolpho Telarolli Junior, especialista em saúde coletiva da Universidade Estadual Paulista, em Araraquara. Mas dá pra controlar a disseminação com iniciativas que envolvam a eliminação de criadouros no ano todo e interferências rápidas em locais que passam a registrar zika, chikungunya ou dengue. “Se o mosquito não picar alguém com uma dessas doenças, não vai passá-la pra frente”, ensina Luz.
Para maioria dos brasileiros, zika é a doença mais grave entre as transmitidas pelo Aedes aegypti
7. O planejamento de uma gestação
Não há uma regra definitiva, até porque a decisão de ter um filho parte do casal. Dito isso, ao adiar um pouco esse sonho, você dá um tempinho para a ciência calcular o real risco de o zika gerar deformações e para determinar fatores que aumentam ou reduzem essa probabilidade. “Além disso, empurrar o início da gravidez para épocas frias e com menos chuva faz subir a chance de não ser infectado”, diz Corintio Mariani Neto, da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo. Entre as mulheres que já estão ficando barrigudas, a ordem é vestir roupas compridas, aplicar repelente direto e evitar aglomerações — para a eventual possibilidade de o zika passar pela saliva e mesmo para se proteger de outras encrencas.
Os exames
“Os testes disponíveis detectam o vírus só nos primeiros dias após o início dos sintomas”, lamenta Leonardo Weissman, médico da Sociedade Brasileira de Infectologia. Considerando que 80% dos casos não geram manchas ou outros sinais, é difícil cravar se ele infectou a gestante em algum momento. Mas métodos que acusam se o inimigo a atacou até meses antes vêm sendo pesquisados.
8. Corrida da vacina
No Brasil, o Instituto Butantan pretende adaptar seu imunizante contra a dengue — em fase final de estudos — para o novo oponente. E o Instituto Evandro Chagas se juntou à Universidade do Texas (EUA) para avaliar duas abordagens. A primeira vai pegar trechos do DNA do vírus e envelopá-los para que a pessoa produza anticorpos. “A opção é inócua. Logo, pode ser usada por gestantes”, explica o médico Pedro Vasconcelos, coordenador do trabalho. Ele crê que em 12 meses já iniciarão testes com humanos. A segunda ideia é inserir mutações nos genes do zika para atenuar drasticamente seus estragos e aí injetá-lo para incitar a imunidade. Mas essa vacina, fácil de ser fabricada em larga escala, deve demorar mais antes de ficar pronta para os estudos clínicos.
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9. Os nervos dos adultos em apuros
A síndrome de Guillain-Barré é uma resposta exagerada das nossas defesas naturais, que começam a atacar os neurônios, provocando especialmente paralisia das pernas e dos braços. “Vários agentes podem provocá-la, e o zika está sendo apontado como um deles. Mas essa consequência é bastante rara”, analisa a neuropediatra Silvana Frizzo. O elo causal ainda não foi estabelecido, porém há achados fortes nesse sentido. Segundo uma pesquisa publicada no periódico científico The Lancet, 42 pessoas foram diagnosticadas com Guillain-Barré na Polinésia Francesa durante o surto de zika, entre 2013 e 2014. Todas apresentaram vestígios do contágio. Por aqui, o MS registrou um crescimento de 29,8% nas internações pela síndrome ao comparar 2014 com o ano passado.
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10. As conspirações
Capítulo 1: uma vacina vencida gerou o surto de microcefalia. Balela! A disseminação dos casos — que iniciou em focos e avançou ponto a ponto, como numa infecção vinda de um mosquito — não coincide com um programa de imunização, que engloba uma grande área de uma vez. Isso sem contar que a Polinésia Francesa viu uma expansão de alterações cerebrais e essa vacina não chegou lá. Capítulo 2: um larvicida é o real culpado. Pois inexistem evidências disso e estados que não empregaram o produto têm ocorrências de microcefalia. Capítulo 3: na Colômbia, tem zika e não microcefalia. Ora, o número de casos lá é menor e eles são mais recentes — boa parte dos bebês ainda não veio ao mundo. O próprio governo colombiano estima que 500 crianças nascerão com o mal.